AJDABIYA, Líbia – Os combatentes rebeldes são chamados de shebab, que em árabe significa jovens. A maioria deles não passa disso: jovens idealistas, muitos universitários de classe média, cujos pais bem relacionados os pouparam até do serviço militar obrigatório, e que por isso nunca pegaram numa arma antes. Quando os foguetes começam a cair perto deles, sobem no carro e fogem apavorados.
Em contraste, há um pequeno grupo de homens na casa dos 40 anos, de barba espessa, rostos enrugados e olhar de quem já viu outras guerras. Eles avançam sob a barragem de foguetes sentados nos bancos de suas peças de artilharia montadas sobre carrocerias de caminhonetes, disparando os canhões de 14,5 ou 23 milímetros e gritando: Allah-u-akbar, Deus é grande. Não têm medo da morte; suas armas não são páreo para os foguetes das brigadas de elite de Muamar Kadafi; mas sabem o que estão fazendo.
São líbios veteranos do Afeganistão, que agora lutam a jihad em seu próprio país, depois de terem passado parte de sua vida no exílio ou na temida prisão de Abu Salim, em Trípoli, que Kadafi reserva aos dissidentes. São os homens do Al-Jamaa al-Islamiya al-Mokatila, ou Movimento Combatente Islâmico, que está na lista da ONU do terrorismo internacional, e é considerada, no Ocidente, a filial da Al-Qaeda na Líbia.
Dois de seus líderes voltaram do exílio recentemente, e concordaram em falar ao Estado, na sua primeira entrevista na Líbia, e também a primeira em que deram seus nomes e se deixaram fotografar.
“Chega de nomes de guerra”, disse Abdul Manem al-Madhouni, de 41 anos, no único momento em que quase esboçou um sorriso. “Está tudo acabado”, completou, referindo-se a Kadafi, que foi alvo de quatro tentativas de assassinato do Al-Mokatila, entre 1994 e 97, uma vez por ano. O ditador reprimiu violentamente o movimento, no interesse de esmagar qualquer oposição. Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, passou a usar a repressão em favor de sua reabilitação no Ocidente, assumindo o papel de dique contra a expansão da Al-Qaeda no Norte da África.
Al- Madhouni voltou do Irã, onde viveu nos últimos nove anos e meio – sete anos e meio dos quais em prisão domiciliar, segundo ele por ter entrado ilegalmente no país, vindo do Afeganistão, no calor dos atentados de 11 de setembro.
Abdullah Mansour al-Zwei, de 42 anos, hesita em dar seu nome, porque pretende voltar à Grã-Bretanha, onde se exilou depois do atentado, também vindo do Afeganistão e Paquistão. Acaba cedendo: “Esse é o meu nome verdadeiro, não como sou conhecido lá.” Ambos são do conselho de 12 integrantes que dirige o movimento, e foram para o Afeganistão em 1989, quando tinham cerca de 20 anos, para lutar na jihad contra os invasores soviéticos, no final da guerra que durou dez anos.
Al-Maddhouni e Al-Zwei chegaram ao Afeganistão alguns meses antes da criação da Al-Qaeda.
Admitem que conviveram com Osama Bin Laden e lutaram lado a lado com ele. “Viajei com Bin Laden de Jeddah (Arábia Saudita) para o Paquistão”, recorda Al-Zwei, que estudou teologia islâmica na cidade saudita de Medina. “Ele era um homem normal, apenas rico, que ajudava as famílias dos combatentes.” A Al-Qaeda seria formada meses depois, com esse propósito. “Nós rezávamos do lado dele na mesquita, como qualquer outro”, completa Al- Maddhouni, que estudou teologia e assuntos militares no Paquistão e no Afeganistão.
Eles dizem que se reuniram “muitas vezes” com Bin Laden, “todas antes do 11 de Setembro”. E que não se aliaram à Al-Qaeda porque consideravam que deviam concentrar sua luta na Líbia, e não abraçar a causa contra os Estados Unidos. Continuaram por mais 12 anos depois da derrota dos soviéticos no Afeganistão, onde tinham campo de treinamento, armas e segurança.
O grupo pede para ser retirado da lista da ONU, argumentando que não está ligado à Al-Qaeda nem ao terrorismo islâmico internacional. No esforço de se livrar desse estereótipo, resolveram mudar seu nome para Al-Harakat al-Islamiya al-Libya – Movimento Islâmico Líbio. Afirmam também que não querem introduzir uma teocracia islâmica na Líbia; não lutam com a bandeira de seu grupo, mas da Líbia independente, adotada pelos “revolucionários”; e colocaram-se sob o comando do general Khalifa Hafter, comandante das Forças Armadas rebeldes.
O movimento tem entre 500 e 600 integrantes, que deixaram a prisão a partir de 2006, como parte de um programa de reformas conduzido por Seif al-Islam, filho de Kadafi. Outros 30 continuam presos. Eles transmitem aos shebab as táticas da guerra de guerrilha, com as quais os afegãos e muçulmanos do mundo inteiro que se uniram nessa jihad derrotaram a então poderosa União Soviética.
Em todos os cantos do mundo muçulmano, da Argélia à Chechênia e à Indonésia, os “afegãos”, como são chamados, já desempenharam esse papel nos seus respectivos países. O convívio no Afeganistão os tornou uma irmandade internacional. Voluntários de outros países se ofereceram para vir lutar na Líbia, mas os líderes rebeldes recusam a presença de estrangeiros.
Al-Maddhouni e Al-Zwei, que obtiveram autorização do conselho para conceder essa entrevista, dizem que o grupo aceita o conceito de democracia, “desde que não viole os princípios do Islã”. À pergunta sobre se querem impor a todos os líbios as normas de conduta islâmicas, Al-Maddhouni responde: “Primeiro precisamos construir um Estado de Direito, baseado na liberdade.” Mas acrescenta: “A Líbia é um país muçulmano.” Al-Zwei continua: “Somos iguais aos outros grupos, aos liberais, que pensam que a proposta deles é a melhor para o país. Mas não queremos obrigar o povo nem eliminar os outros.”
Eles temem pelo perigo da divisão entre os líbios: “É melhor a Líbia continuar sob Kadafi do que se transformar num Iraque ou Somália.” Os líderes islâmicos líbios não esperam resultados imediatos, além de derrotar Kadafi: “Temos uma missão muito longa. A Líbia vai partir do zero.”
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