Quando o presidente Fernando Henrique Cardoso disse, durante cerimônia de entrega de prêmio de inovação tecnológica, em novembro, que professor é o pesquisador que não deu certo, tocou num problema de fundo da mentalidade nas universidades públicas brasileiras.
O parâmetro de excelência perseguido por elas é a pesquisa de ponta. A formação de profissionais e de professores é vista como algo menor.
Além de não atender aos interesses da maioria dos contribuintes – que está em busca de um lugar ao sol no mercado de trabalho, e não de uma carreira acadêmica -, esse modelo é caro e ineficiente. Em países como a França, a Inglaterra e os Estados Unidos, há instituições que formam profissionais e outras que formam pesquisadores. No Brasil, as duas coisas estão misturadas.
“É impossível atender à demanda crescente por ensino superior com universidades que associam ensino a pesquisa. É muito caro”, diz a educadora Eunice Durham, da USP. “Uma faculdade de engenharia precisa de um bom professor de física, não de um bom pesquisador”, exemplifica a especialista. “A esquerda criou um mito segundo o qual ensino sem pesquisa é alienante. Não é verdade.”
Na Europa, compara Eunice Durham, o professor até pode fazer pesquisa, mas não na universidade. “É preciso profissionalizar o pesquisador. Sem pesquisa profissional, não há desenvolvimento tecnológico, mas é preciso redimensionar, criar outras instituições.” Os professores poderiam fazer pesquisas nessas instituições e trabalhar em tempo parcial nas universidades.
Hoje em dia, o que acontece é que as universidades bancam professores em regime de dedicação exclusiva e instalações para pesquisa, levando-os a se dedicar pouco ao que, para o senso comum, é a atividade-fim da universidade: dar aulas.
“Os cursos mais concorridos são os que formam profissionais, como medicina e engenharia, e professores, como história e geografia”, observa a educadora Guiomar Namo de Mello. “As pessoas estão querendo ter uma profissão. Ninguém faz pesquisa sobre microbiologia na Faculdade de Medicina. A cultura brasileira tem a embocadura correta. O problema é a instituição.”
“A universidade é sustentada pelos impostos e os contribuintes não querem dela só pesquisa”, entende Aldo Tonso, do Laboratório de Engenharia Bioquímica da USP. “Quem compra cigarro e paga 50% de ICMS quer mandar o filho para a escola e quer que ele tenha bom ensino. Não entende direito o que é pesquisa.”
De acordo com Maria Helena Guimarães de Castro, do MEC, mais de 70% dos jovens americanos estão matriculados no ensino superior graças aos cursos de curta duração dos chamados “community colleges”, que absorvem metade das matrículas. “Na Inglaterra e na Alemanha, é assim também.”
Na contramão, as universidades estaduais paulistas investem cada vez mais em pós-graduação, “ao passo que a graduação vem perdendo dinamismo”, aponta Eunice Durham. Na USP, a pós-graduação, à qual se dedicam 4 mil professores, já tem 23 mil alunos; mais da metade do que tem a graduação: 42 mil.
“A pesquisa tanto pode ajudar como pode atrapalhar muito a graduação”, avalia Marcelo Massarani, coordenador da graduação da Engenharia Mecânica e do Laboratório de Criatividade da Escola Politécnica da USP. “Atrapalha pelo interesse dos professores pela pesquisa. Viajam para congressos, redigem papers, publicam em periódicos… tudo isso toma muito tempo e é mais divertido do que dar aula para a graduação.”
Jair Ribeiro Chagas, diretor de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade de Mogi das Cruzes, reconhece que uma das grandes críticas que se fazem ao sistema alemão de ensino se aplica ao Brasil: o Herr Professor não quer dar aula na graduação. “Quer se dedicar à pós, que rende artigos para publicar e reconhecimento”, explica Chagas, professor licenciado da Escola Paulista de Medicina.
Não é só o retorno intelectual da pós-graduação que é maior: “Há verbas para pesquisas, viagens, carreira, mas não incentivo para o ensino na graduação”, critica Eunice Durham. “As bolsas de iniciação científica fazem com que, na prática, a graduação forme futuros pós-graduandos, pesquisadores.” Durante a greve, os professores continuam se dedicando à pesquisa. A pós-graduação não pára. O que pára é a graduação. “A greve sacrifica a parte mais frágil da universidade”, conclui a especialista.
Outra visão – “Nunca vi na minha vida ocorrer de professor não querer dar aula na graduação por causa da pesquisa”, rebate Carlos Henrique de Brito Cruz, presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e diretor do Instituto de Física da Unicamp.
“Vejo o contrário: a pesquisa ajuda o professor a oferecer um ensino muito melhor.” Brito cita um professor da Universidade de Princeton, nos EUA, que dizia que a pesquisa está para o ensino como o pecado para a confissão: “Se não fizer um pouco do primeiro, não tem o que dizer no segundo.”
“Pesquisa é indissociável de ensino”, sentencia Paulo Nussenvaig, do Laboratório de Óptica Quântica da USP. “Pesquisa não é só resultado, é também ambiente”, acrescenta o filósofo Renato Janine Ribeiro, da USP. “A maior parte das universidades privadas brasileiras não tem pesquisa e não tem bom ensino.”
Na visão do MEC, a dedicação à pesquisa não prejudica a presença na sala de aula: dá perfeitamente para fazer os dois. “Suponha um professor com 40 horas semanais”, sugere Maria Helena Guimarães de Castro, secretária interina de Educação Superior. “Vai dedicar 10 horas (semanais) a dar aula, que é a média nas públicas. Restam 30 horas para pesquisa, planejamento de aula e atendimento individual ao aluno.”
A secretária acha que esse professor até “deveria” dar mais aulas. “Mas é minha opinião.” O assunto está na esfera da autonomia universitária. O Ministério da Educação tentou dar um pequeno empurrão. O professor que dá 12 horas de aula por semana ganha mais Gratificação de Estímulo à Docência (GED).
“Em universidades particulares, não há espaço para esse tipo de preguiça. Por mais que pesquise, o professor tem que dar aula”, diz a bioquímica Regina Costa Oliveira, ex-professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e hoje na Universidade de Mogi das Cruzes. Integrante da equipe dessa universidade particular do interior de São Paulo que ajudou a seqüenciar o genoma, a pesquisadora tem carga horária de 18 horas de aula e 22 horas de pesquisa por semana. “No papel; na prática, faço 32 horas de pesquisa fácil.”
Regina, que fez pós-doutorado na USP, entusiasma-se: “A motivação na universidade privada é muito grande. Somos poucos e temos que fazer de tudo. Não é como na USP, onde os professores podem entrar na sala de aula de vez em quando. Aqui, a universidade espera desempenho na sala de aula.”