Região da Bolívia que responde por 30,3% do Produto Interno Bruto não tem voz ativa na política
SANTA CRUZ DE LA SIERRA – Em setembro de 1904, um grupo de notáveis de Santa Cruz de la Sierra enviou um “memorandum” ao Congresso boliviano pedindo a construção de uma ferrovia ligando a cidade a La Paz. Com 15 páginas, o libelo explicava por que não era bom para o país continuar concentrando seus recursos no Altiplano ocidental e mantendo as planícies orientais abandonadas à própria sorte.
“Os colonizadores espanhóis, guiados na época pelo incentivo do ouro exclusivamente, dedicaram-se a povoar a região mineira dos Andes”, lembrava a elite crucenha. “Não tinham mais ideal que extrair ouro e prata; jamais pensaram na colonização dos fertilíssimos territórios de seus vastos domínios por meio do estabelecimento de colônias agrícolas, como o fez a raça saxônica na América do Norte.”
Em La Paz, alguns receberam o memorando como prova da pretensiosa ignorância da elite crucenha; outros, como um alarmante ato de rebeldia. Todos o esqueceram rapidamente. A planície continuou pobre e isolada, seu açúcar seguindo em lombo de animais para os centros de consumo, perdendo no preço para seus concorrentes chilenos e peruanos. Somente durante a Guerra do Chaco (1932-35) foi que o governo central substituiu a trilha de mula por uma estrada de terra, para transportar tropas.
Depois da 2.ª Guerra Mundial, em retribuição pelo fornecimento de estanho boliviano, os Estados Unidos enviaram à Bolívia uma equipe chefiada pelo economista Marvin Bohan para fazer um diagnóstico do país. Depois de percorrê-lo, a missão Bohan chegou à mesma conclusão que os crucenhos de 40 anos atrás: se quisesse desenvolver-se, garantir segurança alimentar, equilibrar sua balança comercial, a Bolívia tinha de ocupar o seu território oriental.
Foi preciso uma guerra civil, no entanto. Em 1956, os crucenhos iniciaram um levante para exigir o cumprimento de uma lei de 1938, que concedia 11% em royalties sobre o petróleo extraído para o respectivo Departamento (equivalente a Estado). Depois de dois anos, o governo central cedeu, os recursos começaram a chegar, e com eles a tão sonhada ferrovia. Santa Cruz decolou. Vieram engenhos de cana, gado, gente, num autêntico eldorado. E, no fim dos anos 80, o boom da soja.
Com 25% da população economicamente ativa do país, Santa Cruz gera 30,3% do Produto Interno Bruto nacional. Tornou-se o Departamento que mais produz no país, deixando para trás La Paz, com 25,7%, segundo dados da Câmara de Indústria, Comércio, Serviços e Turismo de Santa Cruz (Cainco). Sua renda per capita em 2002 era de US$ 1.098, 24% acima da média nacional, de US$ 883. Em 2003, Santa Cruz respondeu por 54% das exportações da Bolívia. E é o Departamento que paga mais impostos: 40,0% da arrecadação, enquanto La Paz paga 38,1%.
Embora pague mais impostos e sua população represente 24,5% do total, o Departamento tem 21% dos professores, enquanto La Paz conta com 29% (ainda assim, tem a menor taxa de analfabetismo do país: 7,26%). Tem 409 estabelecimentos de saúde, enquanto La Paz tem 560. O último hospital com recursos públicos foi construído durante a Guerra do Chaco. De lá para cá, os novos foram feitos com dinheiro de ajuda internacional. Com 2,09 milhões de habitantes, Santa Cruz tem 3 mil policiais – dos quais metade em tarefas administrativas. Os claros deixados pelo governo central em áreas como eletricidade, telefonia, saneamento, limpeza urbana e eletricidade têm sido preenchidos com cooperativas.
Dos US$ 450 milhões que envia ao Tesouro em impostos, 75% não voltam, segundo dados do governo central (o Comitê Pró-Santa Cruz, sustentado pela iniciativa privada local, calcula que o repasse seja de apenas 8%). O motivo desse descompasso é que Santa Cruz se tornou um gigante econômico mas seguiu sendo um anão político. Considerando sua população, o Departamento deveria ter no mínimo 32 deputados, de um total de 130. Tem 22. O governador, como em todos os nove Departamentos, é nomeado pelo presidente. “Ele não tem legitimidade”, diz Lorgio Balcazar, gerente-geral do Comitê. “Só se preocupa em agradar ao presidente, não à população.”
Na quinta-feira, o governador Jaime Paz Rea deu uma amostra de sua dessintonia com o que se passa em Santa Cruz. Enquanto a capital do Departamento era cenário de uma batalha campal entre policiais e motoristas de micro-ônibus, em greve por aumento da passagem, Paz Rea acompanhava placidamente uma pequena manifestação contra os bloqueios de estradas promovidos pela oposição, convocada pelo presidente Carlos Mesa. Os repórteres foram ouvi-lo sobre a violência, que deixou 30 feridos, dos quais 7 policiais, e Paz Rea não sabia do que estavam falando.
Além da falta de recursos, eles são mal aplicados, por causa da excessiva centralização. Tudo é decidido em La Paz, a 900 quilômetros de Santa Cruz de la Sierra. Balcazar conta que visitou uma escola no povoado de Roboré, a 250 quilômetros de Santa Cruz de la Sierra, com dez alunos e dois diretores.
No dia 14 de fevereiro de 2001, no 176.° aniversário da proclamação da independência de Santa Cruz frente ao domínio espanhol, um grupo de notáveis cruceños, reunidos no movimento Nación Camba, lançaram um manifesto inspirado no “memorandum” de 1904, no qual reivindicaram autonomia para o Departamento. Como o seu precursor, o novo memorando foi recebido com um misto de descaso e afetação.
Como no caso da ferrovia, foi preciso uma demonstração de força para o governo reagir. Dessa vez, no lugar de guerra civil, os cruceños promoveram uma manifestação – a maior da história do país. No dia 28 de janeiro, 350 mil pessoas se reuniram em torno do Cristo Redentor, um marco da cidade, para exigir autonomia. No mesmo dia, o presidente Carlos Mesa firmou decreto marcando eleições diretas para os governadores em outubro de 2006. A aprovação das eleições diretas e da autonomia dos Departamentos entrou na pauta mínima de votação que o presidente negociou com o Congresso no início da semana, em troca de sua desistência de deixar o cargo.
Até onde os crucenhos querem ir? “Queremos ficar com dois terços da receita que arrecadamos e com a competência de administrar nossa saúde, educação, segurança pública, etc.”, enumera Balcazar. Estudo do Comitê listou 39 áreas que o Departamento deveria gerir. “Não somos separatistas”, descarta Balcazar.
“Há uma interdependência de mercados entre Santa Cruz e o resto do país, ainda que 70% da produção seja exportada”, explica Carlos Dabdoub, fundador do Nación Camba (palavra em guarani que significa “amigo”, com que os nativos se referiam aos espanhóis, e que hoje designa os crucenhos). “Além disso, Estados menores na América do Sul podem ser mais débeis perante os organismos multilaterais e as transnacionais. E há laços históricos com a Bolívia, construídos nos últimos 200 anos.” Mas Dabdoub, que deve se candidatar a governador se houver mesmo eleição direta, reconhece que no próprio Nación Camba as aspirações variam de um Estado federal até a independência.
“A Bolívia é um país desgraçado, nunca será rica”, sentencia o separatista Carlos Valverde Barbery, de 76 anos, fundador do Movimento Federalista Democrático, há 25 anos, pelo qual foi candidato a presidente. “Tudo nos separa. Nada nos une.” Valverde não representa a maioria: pesquisa feita em novembro mostra que 51% dos moradores de Santa Cruz de la Sierra não querem a separação; 64% desejam apenas a autonomia e 20%, o federalismo. “Queremos apenas tranqüilidade para trabalhar”, resume Balcazar. “Sabemos que podemos cuidar de nós mesmos.”