Carlos Mesa, o vice, assume país abalado por mais de um mês de distúrbios
LA PAZ – Depois de seis semanas de violentos distúrbios que deixaram 74 mortos, o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada renunciou ontem à noite, por meio de carta enviada ao Congresso. A renúncia foi aceita e o vice-presidente, Carlos Mesa, empossado.
“A democracia está sob o assédio de grupos corporativos, políticos e sindicais, que não crêem nela”, afirmou Sánchez de Lozada na carta, apontando um “quadro de sedição” no país. “Os perigos na pátria seguem intactos.”
A renúncia foi aprovada por 97 votos a favor e 30 contra. A sessão, precedida de um minuto de silêncio em homenagem aos mortos, foi conturbada pelos gritos de “assassino” de parlamentares da oposição. E pelas vaias quando alguém votava contra a renúncia. A votação foi oral.
Os deputados e senadores de todo o país chegaram em ônibus escoltados pelo Exército, no fim da tarde, à sede do Congresso, fechado desde o início dos distúrbios na semana passada. Antes de empossar o vice, o presidente do Senado, Hormando Vaca Diez, agradeceu ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva por ter enviado seu assessor Marco Aurélio Garcia para mediar o conflito. Garcia, que estava na galeria do Congresso, levantou-se e foi aplaudido.
Sánchez de Lozada e a primeira-dama, Ximena, embarcaram à tarde no helicóptero da presidência, da residência oficial, onde estavam confinados desde o fim de semana, para Santa Cruz de la Sierra, 900 quilômetros a leste. De lá, embarcariam à noite para Miami, num vôo do Lloyd Aereo Boliviano, às 22h20 (23h20 de Brasília), minutos antes de o Congresso empossar Carlos Mesa. Vários ministros embarcaram com o presidente.
Na segunda-feira, Mesa afastara-se do governo, em repúdio à violenta repressão das manifestações pelas forças de segurança. Segundo os constitucionalistas, o vice pode prosseguir no cargo até concluir o mandato, em agosto de 2007.
Esse cenário, no entanto, pode não se concretizar. Mesa, jornalista e historiador, não tem vínculos partidários, e poderia enfrentar dificuldades no Congresso. Nesse caso, uma das possibilidades seria a convocação de eleições, embora sigam, na linha sucessória, o presidente do Senado, do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), e o presidente da Câmara dos Deputados, Oscar Arrien, do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), partido de Sánchez de Lozada.
Na visão do dirigente do Movimento ao Socialismo (MAS), Evo Morales, principal líder da oposição, o vice-presidente deveria conduzir um governo de transição. Segundo ele, Mesa deveria atender ao “clamor do povo” pela convocação de uma Assembléia Constituinte, num processo que levaria de um a dois anos. Depois disso, seriam realizadas novas eleições.
Logo de manhã, as horas do presidente já pareciam estar contadas, depois que ele perdeu o apoio de Manfred Reyes Villa, dirigente da Nova Força Republicana (NFR), que apenas dois dias antes tinha reiterado seu respaldo a Sánchez de Lozada. “Não podemos continuar assim”, disse Reyes, capitão da reserva, ao sair da residência oficial. “Pedi ao presidente que renuncie.” Em princípio, Sánchez de Lozada se recusou, argumentando que não seria uma solução, pois, dentro de dois meses, o país voltaria a mergulhar na crise.
“As reformas vieram tarde demais”, justificou Reyes, referindo-se ao manifesto anunciado pelo presidente, ao lado do dirigente da NFR e do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), Jaime Paz Zamora, também integrante da coalizão. O documento previa um referendo sobre a exportação de gás, a revisão da Lei de Combustíveis e a convocação de uma Assembléia Constituinte.
“Não estou deixando o barco”, afirmou Reyes. “Simplesmente não podemos remar contra a maré.” Com 25 das 130 cadeiras na Câmara dos Deputados, a NFR assegurava maioria de dois terços ao governo, dando-lhe margem para emendar a Constituição e votar leis importantes.
Depois de Reyes, foi a vez de o dirigente do MIR reunir-se longamente com o presidente – que, entre um aliado e outro, recebeu Marco Aurélio Garcia, enviado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Paz Zamora evitou a palavra “renúncia”. Disse ter pedido ao presidente que fizesse uma “reflexão”, e que esperava dele “comportamento responsável”.
Na quinta-feira, num indício de que a transição poderia estar em marcha, o embaixador americano em La Paz, David Greenlee, reuniu-se com o vice-presidente.
O comandante das Forças Armadas, general Roberto Claros, manteve publicamente o respaldo ao presidente até o fim. Mas, com cerca de 200 mil manifestantes em La Paz exigindo a renúncia, os militares reconheciam que a situação de Sánchez de Lozada se tornara insustentável. “Não há como segurar essa gente”, disse ao Estado um oficial do Exército.