Pesquisadores do Ipea medem o impacto do índice de escolaridade sobre a renda
RIO — Imagine um quintal cheio de cachorros de tamanhos diversos. Todos os dias, alguém despeja ossos grandes e pequenos no quintal. Os cachorros grandes ficam com os ossos maiores e os pequenos, com os menores. Agora, imagine que os cachorros menores cresçam e fiquem iguais aos grandes. Mas continuam sendo despejados ossos grandes e pequenos. Os ossos grandes passarão a ser disputados por todos, e uns continuarão tendo de se conformar com ossos pequenos.
O professor Michael Sattinger, do Departamento de Economia da Universidade de Nova York em Albany, conta essa fábula para defender a tese segundo a qual a educação não faz a renda per capita aumentar. Os filhos dos pobres com maior escolaridade — os cachorros pequenos que cresceram no quintal — podem roubar os ossos maiores dos cachorros que já eram grandes, ou seja, ter renda maior que os filhos dos ricos com escolaridade igual ou menor.
Mas terá sido apenas uma troca. A soma das rendas — o tamanho da economia — continuará a mesma. Sattinger pertence ao grupo dos economistas que acredita que a educação não faz a economia — os ossos — crescer. Há outras duas teorias gerais sobre a relação entre educação e economia.
A segunda é a que diz que a escolaridade baixa pode atrapalhar o crescimento econômico, quando afeta a produtividade. Mas, se for alta, não a impulsionará. Essa visão predominou no Brasil entre os anos 60 e 90, observa Ricardo Paes de Barros, diretor de Estudos Sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Os governos militares, diz ele, priorizaram a modernização da infra-estrutura e do maquinário. E fizeram investimento “cirúrgico” na educação — aquela aplicada à produção, como o sistema dos três “S” (Sesi, Sesc e Senai) e centros de excelência como o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA).
A terceira corrente acredita que a economia seja puxada pelos dois capitais: o humano e o físico. É a visão de Paes de Barros e de Rosane Mendonça, também do Ipea, cuja tese de doutorado é sobre o impacto da escolaridade na renda.
A equipe do instituto, vinculado ao Ministério do Planejamento, calculou esse impacto em porcentagem, cruzando dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. No Brasil, cada ano a mais de estudo representa, em média, 11% a mais no salário. Nos Estados Unidos e na Argentina, onde o nível de escolaridade é bem mais alto, esse índice cai para 8%.
A chamada taxa de retorno varia de acordo com os níveis de escolaridade (quadro maior). O prêmio maior do mercado de trabalho vai para o ensino superior (de 11 a 15 anos de estudo); seguido pelo ensino médio, antigo colegial (8 a 11 anos); e pelo primeiro ciclo do ensino fundamental, antigo primário (0 a 4); o menor retorno é o do segundo ciclo, o antigo ginásio (de 4 a 8 anos de estudo).
Os pesquisadores fizeram, também, o entrecruzamento de renda com escolaridade dos indivíduos e de seus pais, local de moradia e raça (quadro menor), para chegar ao peso específico de cada fator social. Concluíram que o número de anos de estudo é, de longe, o que mais pesa na renda. A escolaridade do trabalhador, segundo esse cálculo, responde por 38% de seu salário; a de seu pai, por 4%, e a de sua mãe, por 3%.
A desvantagem de morar no Nordeste, conservadas todas as outras características — ou seja, se o indivíduo tivesse a mesma escolaridade, raça, etc. —, é de apenas 7% e a vantagem de morar nas áreas metropolitanas, de 3%. A discriminação contra os negros — de novo, conservadas todas as outras características — é de mero 1%. Assim, matematicamente falando, a explicação para a renda média mais baixa dos nordestinos e dos negros parece estar no fato de sua condição estar associada, por exemplo, à escolaridade mais baixa. “A desvantagem educacional do pobre faz com que sua renda seja três vezes menor”, sintetiza Paes de Barros.
O índice de escolarização tem registrado aumento brutal no Brasil — e os mais beneficiados são aqueles que faltava atingir: os mais pobres. Em 1992, 97,2% das crianças de 7 a 14 anos de famílias de renda alta estavam na escola; em 1999, o índice subiu para 98,9% — uma diferença de apenas 1,7 ponto porcentual. Já entre as crianças de renda baixa, o índice saltou de 74,5% para 92,5% — ou 18 pontos porcentuais.
Em 1992, 79,5% dos jovens de renda alta continuavam estudando e, em 1999, 92,5% — 13 pontos porcentuais a mais. Entre os jovens de renda baixa, o salto foi de 46,8% para 68,6% — 21,8 pontos porcentuais.
Portanto, o impacto da escolarização alcança de cheio os mais pobres. Mas, até aqui, é aplicação de modelos matemáticos sobre estatísticas. Será que o aumento da escolaridade implicará o aumento da renda dos mais pobres e, com ela, distribuição de renda?
Paes de Barros acha que sim. Para ele, esse impacto ainda não se fez sentir porque a geração que permanece mais anos na escola ainda não saiu dela. Os mais velhos ainda estão na faixa dos 20 anos de idade. Em breve, essa leva de jovens mais instruídos entrará no mercado de trabalho e, a partir daí, começará a se ver o resultado.
“Estamos cientificamente no pior dos mundos, porque investimos loucamente em educação e ainda não tivemos tempo de ver o efeito sobre a renda”, impacienta-se Paes de Barros. “Mas todos os países que investiram em educação tiveram esse efeito.”
“Se essa revolução toda não aumentar a produtividade, não vai ter o efeito que esperamos”, pondera. “Mas, se você apostar que a história é movida pela educação, vai acontecer algo estrondoso lá na frente.” A aposta é a de que, com a educação, crescem a produtividade, a competitividade, as exportações, o emprego, o consumo, a economia e a renda.
Se o ganho dos pobres é maior que o dos ricos, reduz-se o abismo entre uns e outros. Em contrapartida, outro tipo de abismo pode aprofundar-se: entre jovens e velhos. A variança (distância média) nos níveis de educação dos jovens de 18 e 19 anos caiu de 3,37 em1983 para 3,27 em 1997. Já na faixa de 25 anos e mais, ela aumentou de 4,18 para 4,61. “Teremos muitos adultos com pouca educação e muitos jovens com mais educação”, adverte Paes de Barros.
A economia real é mais do que um cenário construído sobre o cruzamento de estatísticas, a formulação de coeficientes e a sua projeção segundo a mudança das variáveis. Mas o Produto Interno Bruto de um país também é mais do que um número constante de ossos grandes e pequenos despejados num quintal. De qualquer forma, como diz Paes de Barros, “seria altamente suspeito não investir na educação por não ter certeza desse resultado”.