‘Estão tentando nos enganar’, reage Evo Morales, um dos líderes do movimento
LA PAZ – Boa parte dos manifestantes que ocuparam as ruas e praças de La Paz, depois de passar a noite nos arredores da cidade, nem sequer tomou conhecimento do manifesto divulgado na noite de quarta-feira pelo presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, convocando um referendo e abrindo caminho para uma Constituinte, num gesto de última hora para tentar apaziguar os ânimos. O manifesto foi rejeitado terminantemente pelos líderes do movimento.
“Estão tentando nos enganar”, acusou o líder indígena Evo Morales, do Movimento ao Socialismo (MAS), argumentando que o manifesto não estipulava quando nem como seria realizado o referendo sobre a exportação de gás e convocada uma Assembléia Constituinte, duas das medidas previstas no documento. “É um referendo consultivo, não vinculante, ou seja, o povo não vai decidir, será apenas consultado.”
Morales também deplorou a ressalva de que a revisão da Lei de Combustíveis seria feita em “concertação” com as empresas estrangeiras – o que inclui a Petrobrás, que importa gás natural boliviano. Morales defende o fim das exportações de petróleo e gás natural antes de ser industrializado na Bolívia, para ganhar valor agregado. Ele também estimou que a Assembléia Constituinte poderia ser convocada em 2011. “Se o povo tivesse que esperar todo esse tempo, não sei o que aconteceria.”
Os estopim dos protestos iniciados há seis semanas foi o anúncio de que o país passaria a exportar gás natural para a Califórnia por meio do porto chileno de Iquique. A Bolívia perdeu sua saída para o mar numa guerra contra o Chile, em 1883, gerando ressentimentos até hoje explorados por líderes nacionalistas. Para os manifestantes, no entanto, o tema do gás passou para segundo plano. Eles querem a cabeça do presidente, que responsabilizam pela morte de mais de 70 pessoas, em confronto com as forças de segurança, nessas seis semanas de protestos que paralisaram o país.
“A única coisa que o presidente fez ontem foi jogar mais gasolina no fogo”, reagiu Roberto de la Cruz, dirigente da Central Operária Boliviana (COB), que lidera os protestos junto com o MAS. De la Cruz e Morales se indignaram com uma frase do presidente, para quem, se não aceitassem sua oferta, estaria provado que, por trás das manifestações, estariam interesses de “grupos anarquistas e narco-sindicais”. Foi uma referência ao principal reduto eleitoral do MAS, os plantadores de coca da região central do país.
“Que ofensa e que humilhação para o povo boliviano mobilizado nas ruas”, exclamou Morales, segundo colocado na eleição presidencial do ano passado. “O verdadeiro anarquista estava ao lado do presidente, é o capitão (da reserva) Manfred Reyes Villa”, disse De la Cruz, referindo-se ao líder da Nova Força Republicana (NFR), que pertence à coalizão e apoiou o manifesto. “O verdadeiro narco é Jaime Paz Zamora”, completou. Dirigente do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), que também integra a coalizão, Paz Zamora foi alvo de denúncias, no passado, de envolvimento com o narcotráfico, chegando a ficar impedido de entrar nos Estados Unidos.
Enquanto Sánchez de Lozada se mantinha recolhido na residência presidencial, o vice-presidente Carlos Mesa, que rompeu com o governo na segunda-feira, fez um pronunciamento à nação, no qual procurou se distanciar tanto da coalizão quanto da oposição. “Perguntaram-me se tenho o valor de matar, não, não tenho”, dramatizou Mesa, referindo-se à sua decisão de romper com o presidente por causa das mortes dos manifestantes. Mas ele também lamentou o estado de convulsão social criado pelos protestos. O próximo na linha de sucessão presidencial, Mesa é aceito pela oposição como alternativa a Sánchez de Lozada.