Muitos camponeses dos trópicos bolivianos sobrevivem graças ao cultivo da coca
VILLA TUNARI, Bolívia – No início da tarde de terça-feira, os irmãos Humberto, de 22 anos, e Ercilia, de 20, estão em casa. Somente seu pai está na roça, cuidando da plantação de coca. Outros quatro irmãos pequenos brincam no pátio de terra, rodeado por cerca de 30 casas, que formam a aldeia de San Lorenzo, no município de Villa Tunari, centro-oeste da Bolívia. Os jovens não têm o que fazer aqui, onde termina a Cordilheira dos Andes e começa a Amazônia boliviana.
Até meados dos anos 90, a coca era o atalho dos camponeses indígenas da planície do Chapare para a prosperidade. Nos morros onde os campesinos têm os seus chacos (pequenas propriedades adquiridas com a reforma agrária de 1953), o arroz, a mandioca, o palmito e o abacaxi praticamente só dão para o sustento da família. Era a coca que irrigava a economia do Chapare, de outras províncias do Departamento de Cochabamba e do país. Calcula-se que ela gerava de US$ 400 milhões a US$ 800 milhões por ano, para um Produto Interno Bruto de US$ 8 bilhões.
“Há três anos, vieram os soldados e disseram que não podíamos plantar mais nada de coca”, recorda Ercilia, uma moça inteligente e esperta, que já deixou a escola e apenas ajuda a mãe a cuidar da casa e dos quatro irmãos pequenos. Ainda assim, a família continua plantando coca, em seu “meio cato”, ou seja, a metade de um lote de cerca de 500 metros quadrados. “Não temos escolha. Nunca nos ajudaram”, explica Humberto, que está na segunda série do ensino médio secundário. “Quando acabar o médio, vou embora daqui.
Não sei para onde, nem para fazer o quê.”
O meio cato da família rende dois pacotes de folhas de coca a cada três meses. Cada pacote é vendido por 400 bolivianos (US$ 56) no entreposto de Chipiriri, um povoado próximo, de onde é transportado para Cochabamba, a terceira cidade do país, 175 quilômetros a sudoeste. Humberto e Ercilia sabem o que acontece com a coca que sua família produz, a partir daí? “Serve para pistchar (mascar) e fazer mate para curar dor de estômago.”
As autoridades bolivianas garantem que a coca do Chapare não serve para mascar, por causa do teor excessivo de alcalóide, que seca a boca. “Até a coca que os índios do Chapare mascam vem do Yungas”, diz o vencedor da eleição presidencial de domingo, Gonzalo Sánchez de Lozada, que começou o programa de erradicação da coca, em seu mandato anterior (1993-97). “Isso é mentira”, revolta-se um motorista da região. “A coca do Yungas é melhor, mas a do Chapare também dá para mascar.”
Dos 14 mil hectares ainda cultivados na região do Yungas, próxima à capital La Paz, 12 mil são legais, reservados ao consumo tradicional dos índios.
Havia cerca de 40 mil hectares nas planícies tropicais do Departamento de Cochabamba, cuja erradicação foi levada a cabo pelos governos de Sánchez de Lozada e do general Hugo Bánzer (1997-2001). Estima-se que restem 2 mil hectares ilegais no Chapare.
“Dizem que os soldados estão vindo de novo, a partir de Chipiriri, para acabar com a coca que restou”, sobressalta-se Ercilia. “Dizem que tem que ser ‘coca zero'”, conta a jovem, citando o slogan do governo de Jorge Quiroga, vice de Bánzer, que o sucedeu depois de sua morte, em agosto do ano passado. “Mas, sem coca, não há dinheiro.” O pequeno lote da família produz 60 abacaxis, que só dão uma colheita por ano. Cada cinco abacaxis são vendidos por 1 boliviano (US$ 0,14).
A frase de Ercilia ecoa por todo o Chapare. “Sin coca, no hay plata”, repete Oscar Ustariz, dono da Rádio Difusora Amazonia, A Voz do Trópico. Os cerca de US$ 80 milhões que os Estados Unidos despejaram na região para substituição de cultivos, na esteira do Plano Dignidade do governo boliviano, parecem ter evaporado com a névoa úmida que cobre as florestas no fundo dos vales, em meio às montanhas verdes que circundam o Chapare.
Ustariz assistiu ao nascimento, apogeu e declíno da coca. “Minha rádio foi criada antes do boom da coca, no fim dos anos 70”, orgulha-se. “Na década de 80, cada povoado passou a ter uma emissora.” A coca transformou os trópicos bolivianos em eldorado sob o breve governo – como todos daquela época – do general Luis García Meza (de 17 de julho de 1980 a 4 agosto de 1981), cujo ministro do Interior, o coronel Luis Arce Gómez, foi apelidado pela imprensa americana de “ministro do narcotráfico”.
“García Meza e Gómez estavam metidos na coca de frente”, testemunha o radialista. “Eles fabricavam.” Os Estados Unidos reagiram e García Meza foi derrubado pelo chefe do Estado-Maior Conjunto da Bolívia, general Celso Torrelio Villa. García Meza, capturado no Brasil, amarga 30 anos de prisão na Bolívia e Gómez foi extraditado para os EUA.
Foram casos extremos, mas a tolerância com o narcotráfico, intercalada por campanhas de combate, prosseguiu por uma década. “As receitas variavam fortemente, dependendo do que o governo fazia”, recorda Ustariz. “O preço (pago pelas folhas de coca) caía até dez vezes quando o governo fazia campanha de combate, porque os traficantes desapareciam.”
“Quando a coca estava vigente, havia dinheiro para todos”, lembra Ustariz.
Os tempos de bonança – não de luxo, porque o grosso do dinheiro fica para as máfias do refino e do tráfico – deixaram lembranças nos velhos jipes importados que circulam pela avenida principal de Villa Tunari (a rodovia de 468 quilômetros que liga Cochabamba a Santa Cruz de la Sierra, a segunda cidade do país, a leste). E nos cardápios dos melhores restaurantes, onde um prato contendo um dos animais de caça da floresta (caititu, tatu, porco selvagem ou veado) sai por US$ 4 – o preço do almoço nos hotéis mais chiques de La Paz.
No primeiro ano da erradicação, 1993, o governo de Sánchez de Lozada ofereceu de US$ 2.000 a US$ 2.500 por hectare de coca voluntariamente destruído. Nos anos seguintes, a erradicação passou a ser forçada, a cargo de uma força especial chamada Unidade Móvel para a Patrulhagem Rural (Umopar) e da Força de Tarefa Conjunta, milícia composta de ex-policiais e militares da reserva. Os membros dessa força, criada por Bánzer, recebem US$ 100 mensais de soldo, comida, ajuda de custo e outros benefícios, e são chamados de “mercenários” pelos cocaleiros.
A campanha de erradicação do governo mescla repressão com programas de desenvolvimento da região, com forte participação americana. O trecho da rodovia Cochabamba-Santa Cruz que corta o Chapare, cujo asfalto é freqüentemente varrido pelas chuvas e alagamentos, está sendo recapeado com recursos da USAid, a agência americana de cooperação. Há projetos de promoção do “etno-eco-turismo” e de cultivos de produtos locais, como o locoto, um tipo de pimentão verde.
A presença da polícia e do Exército é ostensiva em toda a região. Nos postos de controle, guardados por policiais com farda de campanha e fuzis, carros, caminhões e ônibus são revistados em busca de tonéis de ácidos, querosene e bicarbonato – os insumos usados na produção da cocaína. Os motoristas e passageiros mostram documentos e declaram sua origem e destino.
Na entrada do Parque Machía, área de preservação ambiental do Chapare, há um desses postos policiais e uma placa dirigida aos eventuais mulas, assegurando que as autoridades pagam mais em recompensa por informações do que os traficantes lhes oferecem pelo transporte da droga.
Para muitos camponeses dos trópicos bolivianos, no entanto, nada foi colocado no lugar da coca. E eles a seguirão cultivando, em seus pequenos chacos no meio da floresta, onde o Estado parece algo distante e tardio.