O fantasma de ‘Che’ ronda a selva

Movimento com a mesma inspiração, liderado por cocaleiro, conquista um quinto do eleitorado

 

VILLA TUNARI, Bolívia – Na sede do Movimento ao Socialismo (MAS) em Villa Tunari, um dos principais redutos do partido na região cocaleira do Chapare, há um grande retrato de Ernesto Che Guevara, pintado sobre a parede branca.

Da perspectiva da história da Bolívia – e do desempenho formidável do MAS nas eleições de domingo passado -, a inconfundível figura do líder guerrilheiro, de boina e barbicha, parece um fantasma rondando de novo a selva boliviana.

Quando foi executado, em sua cela em La Higuera, cerca de 500 quilômetros a sudeste de Villa Tunari, a mando do presidente e general René Barrientos, em outubro de 1967, o Che estava longe de convencer os camponeses bolivianos da conveniência de sua revolução socialista. “Por onde andamos tenho analisado que está verde que tenhamos influência sobre o campesinato, que, sempre que pode, nos delata”, queixava-se o Comandante a seus companheiros, em agosto daquele ano.

O motivo disso, aponta Guillermo Bedregal, chefe de assuntos internacionais do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), de Gonzalo Sánchez de Lozada, é que a Bolívia já havia tido a sua revolução. Liderada por Víctor Paz Estenssoro, líder histórico do MNR, em 1952, ela incluiu reforma agrária e nacionalização das minas. Quando Che Guevara se instalou na selva boliviana, não percebeu que chegara com 15 anos de atraso.

Três décadas depois, no entanto, surge na Bolívia um movimento com a mesma inspiração e arrebata um quinto do eleitorado boliviano, instalando-se solidamente como uma das maiores forças políticas do país. O que representa o líder cocaleiro Evo Morales, o dirigente do MAS, que, depois de ter sido expulso da Câmara dos Deputados em janeiro, sob acusação de apologia do narcotráfico, chega perto de se eleger presidente?

A resposta mais imediata está noutra parede de Villa Tunari, a do sindicato dos agricultores: “Causachun coca”. Que, em quétchua, o idioma dos índios da planície, significa “Viva a coca”. Morales, líder do sindicato dos plantadores de coca do Chapare, luta contra a erradicação do cultivo que representou, para muitos camponeses pobres, a possibilidade de melhorar de vida, com uma atividade, afinal, ancestral em sua cultura. O conceito de socialismo, para eles, é tão alienígena quanto o de erradicação.

Só isso não explica o fenômeno Evo Morales, evidentemente. O MAS açambarcou uma enorme gama de causas sociais que ficaram dispersas em 17 anos de redemocratização e 9 de liberalização econômica na Bolívia. Ao comentar os primeiros projetos de lei que apresentará, Filemón Escóbar, um dos seis senadores eleitos pelo MAS, não falou de coca, mas de anistiar os pequenos devedores e de pagar aposentadoria para trabalhadores que perderam esse direito, com a reforma do sistema.

A plataforma do MAS leva o nacionalismo – presente nas principais campanhas, com exceção do MNR – ao extremo. Argumentando que, de cada US$ 10 exportados, US$ 9 ficam com as transnacionais, Evo Morales defende a suspensão das exportações de gás, objeto de investimento de US$ 361 milhões da Petrobrás, por exemplo, só no gasoduto Bolívia-Brasil. “Recuperar o petróleo e o gás para o país será o princípio para acabar com o modelo de globalização e possibilitar maior dedicação aos setores empobrecidos”, postula Escóbar.

A Central Operária Boliviana fez um apelo ao MAS na segunda-feira, quando a contagem consolidava sua formidável votação, para que não fizesse acordo com nenhum “partido títere dos EUA” no Congresso, a quem cabe escolher o presidente entre os dois mais votados: Sánchez de Lozada e Manfred Reyes Villa. Ao que um jornalista comentou que “os camponeses se converteram na vanguarda do proletariado”, invertendo a fórmula leninista. A noção de “operário” na Bolívia é tão abstrata quanto sua indústria.

A coca é apenas o símbolo de uma Bolívia que se move de um ciclo econômico para outro (antes dela, a prata e estanho e, depois, o gás), sem resolver seus problemas sociais. De um país que é essencialmente rural e indígena (30% quétchua, 25% aimara, 30% mestiço e 15% branco).

No início do caminho para Villa Tunari, as bandeiras vermelhas e lilases da Nova Força Republicana, do ex-prefeito de Cochabamba Manfred Reyes, disputam de igual para igual com as do MAS as casas da periferia. Conforme se avança na estrada e se aproxima do Chapare, as cores branca, azul e negra do MAS passam a dominar a paisagem. A monotonia vai sendo quebrada por outra bandeira, que surge ao lado da do MAS: a multicolor Uipala, símbolo dos camponeses de origem indígena.

O fim do eldorado da coca expulsou muitos desses camponeses para as cidades, engrossando o desemprego e o eleitorado urbano de Evo Morales. Foi só a última leva.

De acordo com levantamento da Comissão Econômica para a América Latina, no período de 1964 a 1998, o investimento líquido na produção rural na Bolívia foi de menos de 1% do investimento líquido global. Os camponeses têm terra, e mais nada. O rentável cultivo da coca, tradicional nas planícies tropicais, é a conseqüência natural. Assim como o fenômeno Evo Morales. 


Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*