Tribalismo ajuda a explicar cisão territorial e política do país

Clãs que apoiam Kadafi são mais numerosos no oeste da Líbia, enquanto tribos opositoras estão em Benghazi, no leste

BENGHAZI – Antes da oração do meio-dia de sexta-feira, que reuniu 15 mil pessoas na Praça dos Mártires em Benghazi, houve uma manifestação pequena, mas de grande significado. Centenas de pessoas traziam cartazes e gritavam palavras de ordem dizendo que eram da tribo Warfallah, a maior da Líbia, e apoiavam o levante contra o ditador Muamar Kadafi. Não quer dizer que toda a tribo, estimada em 1 milhão de integrantes – num país de 6,2 milhões – deve juntar-se ao levante, mas é um sinal do quanto a identidade tribal ainda influi na Líbia.

As tribos são grandes famílias, formadas pelo casamento entre primos, arranjado pelos pais. Os líbios têm uma relação ambígua com a sua identidade tribal. A começar por Kadafi. O ditador pertence a uma tribo pequena, Gaddadfa. Na sua pretensa filosofia política, expressa no Livro Verde e noutros escritos, Kadafi defende a superação do tribalismo em nome do conceito de Jamahiriya, palavra inventada por ele, que significa algo como um “Estado das massas”.

Principalmente nas grandes cidades, as relações não afetam o dia a dia dos líbios, mas elas afloram com força em momentos de crise – como esta guerra civil. “Quando a ordem e os serviços públicos se deterioram recorro a minha tribo”, diz Abdul Gader Ettaib, de 63 anos, que estudou nos Estados Unidos e trabalha na marinha mercante.

Com sua forma drástica de impor autoridade, Kadafi perdeu apoio de parte de sua própria tribo, por causa de episódios como a execução de seu primo distante Hassan Shkal em 1986. Shkal foi barrado no aeroporto de Trípoli quando tentava sair do país. Foi tomar satisfação com o ditador, aparentemente subiu a voz com ele e foi morto por um dos guardas de Bab Azizia, o quartel-general de Kadafi.

O ditador organizou suas forças militares em círculos concêntricos. Quanto mais próximos de sua família, mais bem treinados e equipados os militares. Mas seu piloto norueguês e sua enfermeira ucraniana, assim os mercenários africanos, demonstram que o ditador não pode confiar em nenhuma tribo.

A identidade tribal explica, em parte, a divisão leste-oeste. A tribo Warfallah, cujos líderes tinham pacto com Kadafi, está presente em todo o país, mas concentra-se na região de Trípoli (no oeste), bastião de apoio ao ditador, assim como Sirt (no centro), cidade natal de Kadafi e reduto dos Gaddadfa, 435 km a leste da capital.

Já Benghazi, 1.050 km a leste de Trípoli, um mosaico de tribos, sempre foi palco dos principais protestos contra o regime. Como resultado, Benghazi, com 1 milhão de habitantes, tem infra-estrutura e serviços públicos muito inferiores a Trípoli, de 2 milhões, queixam-se os moradores. No bairro de classe média alta de Tapalino, há um visível contraste entre as casas de alto padrão e as ruas de terra. Os salários também são mais altos.

“Trabalhei uma época em Trípoli e constatei o que todos dizem”, observa um contador de Benghazi. “Pela mesma função pagam-se 200 dinares (US$ 160) aqui e 1.200 dinares (US$ 960) lá.”

Mustafa Abdul Jalil, que renunciou ao cargo de ministro da Justiça no início do levante e se tornou o principal líder da oposição, é da tribo Baraassi, a mesma da mulher de Kadafi, Safia Farkash. Seu reduto é Al-Bayda, 1.240 km a leste de Trípoli. Quando tomaram a refinaria, no dia 4, os rebeldes disseram ter encontrado 14 membros da tribo Farjan, executados com as mãos atadas para trás, aparentemente por terem-se recusado a abrir fogo contra eles.

Os líderes rebeldes têm insistido que Benghazi é apenas a sua “capital” provisória, enquanto não obtêm a queda do regime, e que não querem a divisão do país. “Líbia, um clã. Trípoli, nossa capital”, dizem cartazes espalhados em Benghazi. A preocupação mostra que os laços tribais podem não explicar tudo o que está acontecendo na Líbia, mas também não podem ser desprezados.

Publicado no Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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