Com sua cidade de barracas em Beirute, Hezbollah tenta de novo livrar Síria de condenação pela morte de Hariri
BEIRUTE – A bola rola no gramado do Al-Ahad, o time do Hezbollah. O volante brasileiro Leandro Souza, que chegou na véspera a Beirute, começa o seu primeiro treino coletivo fazendo o sinal da cruz. Ninguém repara. Leandro, que trocou o Anápolis pelo Al-Ahad e por um salário de US$ 6 mil (US$ 2 mil dos quais pagos pelo empresário libanês Samir Shamkla, da Tríplice Fronteira), não é o único não-xiita no time do Partido de Deus.
Além do atacante André Baracho, outro brasileiro que também chegou na quarta-feira, vindo do time japonês Ventforet Kofu, jogam no Al-Ahad um nigeriano, um armênio, um maronita e um sunita – como o técnico iraquiano Anuar Jassam, ex-treinador da seleção de seu país. “Nossa intenção não é misturar política com futebol, pois isso tem gerado violência entre as torcidas”, diz o deputado Mohamed Haidar, do Hezbollah, que veio prestigiar o treino do Al-Ahad, campeão libanês em 2004 e 2005. “Investimos nos esportes para manter os jovens longe do crime e das drogas.”
Al-Ahad – “A Promessa”, em árabe – é parte de uma ampla teia de instituições do Hezbollah, que inclui hospitais, escolas, mesquitas, orfanatos e empresas, como a rede de postos de combustíveis Al-Aytam (Os Órfãos). Mas, com sua escalação timidamente ecumênica (a maioria dos jogadores ainda é xiita), Al-Ahad encerra uma outra promessa: a projeção do Hezbollah como liderança nacional, e não apenas xiita.
A cidade de barracas que a organização vem erguendo há uma semana na frente do Grand Serail, o palácio do governo – hoje cenário de mais uma megamanifestação – é a primeira incursão da milícia xiita na esfera de ação, digamos, “cívica”. Carl von Clausewitz escreveu que “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Num certo sentido, o Hezbollah tenta fazer da política a continuação da guerra.
O estopim para a ruptura com o governo foi a criação de um tribunal internacional para julgar os suspeitos do assassinato do primeiro-ministro Rafic Hariri, em março do ano passado, e de outras 14 pessoas. Os suspeitos são vinculados à Síria, que, junto com o Irã, patrocina o Hezbollah.
Depois da saída do Hezbollah do governo e da aprovação do tribunal pelo gabinete, a lista subiu para 16: o ministro da Indústria, o cristão maronita Pierre Gemayel, foi morto numa emboscada, dia 21. A captura de dois soldados israelenses e a guerra que se seguiu, em julho, também coincidiu com o momento em que as investigações do assassinato avançavam para uma conclusão, incriminando agentes de inteligência ligados à Síria.
“O verdadeiro motivo pelo qual saímos do governo é que ele é comandado pelos americanos e franceses”, disse na quarta-feira ao Estado o deputado Mohamed Raad, do Hezbollah, líder da oposição no Parlamento. “Tem gente que quer assinar um acordo com Israel, esquecendo as Fazendas de Cheba (ocupadas no sul) e os prisioneiros libaneses”, acusou, listando os contenciosos que justificaram captura dos soldados.
É natural que em sua cruzada rumo ao poder, o Hezbollah atraia políticos não-xiitas, como o general cristão maronita Michel Aun e três ex-primeiros-ministros sunitas: pela Constituição libanesa, o presidente da República é cristão maronita; o primeiro-ministro, sunita; o presidente do Parlamento, xiita. Mas, nas praças e ruas em frente ao palácio, ocupadas por milhares de manifestantes vigiados por tanques e soldados do Exército, é visível a desproporção entre xiitas e cristãos (quase não há sunitas). Para compensá-la, a Amal escalou militantes xiitas para ostentar o laranja do movimento de Aun – outrora um feroz líder nacionalista anti-sírio.
“A militância do Hezbollah não é muito sutil”, ridiculariza Samir Franjieh, um dos mais importantes líderes cristãos maronitas no governo. “Na primeira manifestação (dia 1.º), Aun fez um discurso exigindo a renúncia do governo e a multidão respondeu: ‘Allah-u-Akbar’ (Alá é grande). Ele não estava falando para o público dele.”
NOVO LÍBANO
A mistura de grupos religiosos antes nitidamente separados reflete a redistribuição territorial de comunidades deslocadas pela guerra civil (1975-90), pela ascensão social dos xiitas e pela emigração ou empobrecimento dos cristãos. No passado, os investimentos franceses e americanos eram destinados preferencialmente a parceiros locais cristãos. A partir de 1990, eles deram lugar aos sauditas, associados aos libaneses sunitas; e, mais recentemente, ao dinheiro do Irã, que irriga comunidades xiitas por meio do Hezbollah.
Essas mudanças geram tensões. Um empresário sunita conta que se mudou de seu apartamento em Ashrafiyeh, tradicional área sunita de Beirute, para o bairro cristão de Ain Saadi, depois que três famílias xiitas se mudaram para o prédio, durante a guerra com Israel. “Cruzávamos com as mulheres de chador (vestimenta islâmica que cobre todo o corpo). Não quero que minhas filhas convivam nesse tipo de ambiente”, explicou o empresário. “Trabalhei 20 anos para comprar aquele apartamento. Eles, que são do Hezbollah, pagaram à vista.” Ironicamente, a guerra e a reconstrução intensificaram o fluxo de recursos do Irã.
“Meus filhos não vão viver na República Islâmica do Líbano”, disse um empresário cristão maronita falido. “Estou preparando os papéis para migrarmos para a Austrália.”
Os xiitas não são mais a classe pobre e marginalizada do Líbano nem toleram mais decisões à sua revelia e à de seus poderosos aliados na região. É isso o que quer dizer a cidade de barracas no elegante coração de Beirute.
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