Hezbollah converteu cidade que abriga antigos templos pagãos e fortaleza dos conquistadores árabes em seu quartel-general
BAALBEK, Líbano – Sobre as ruínas da antiga Baalbek, Alexandre, o Grande mandou, em 333 a.C., construir um templo para Zeus. E chamou a cidadela de Heliópolis, por causa de seu clima seco e dias ensolarados, que lhe valeram seu primeiro nome fenício: baal, de sol; bek, do Vale do Bekaa. Depois vieram os romanos, que ali ergueram o maior complexo de templos pagãos da Antigüidade. Em seguida, os cristãos deixaram sua marca, com uma estupenda igreja bizantina. Finalmente, as conquistas árabes de 636 converteram a cidadela numa fortaleza militar.
Catorze séculos depois, Baalbek continua a síntese do espiritual e do bélico. O quiosque de souvenirs em frente à cidadela vende camisetas com o fuzil verde sobre o fundo amarelo e as inscrições: “Hezbollah hum al-ghaliboun” (O Partido de Deus são os conquistadores) e “Al-mukawama al-islamiya” (A resistência islâmica) .
Numa versão kitsch dos esplendorosos pórticos greco-romanos, a entrada de Baalbek é hoje emoldurada por uma estrutura de ferro que exibe, no meio, o retrato do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, ladeado pelo líder da Revolução Islâmica, Ruhollah Khomeini, e pelo atual líder espiritual iraniano, Ali Khamenei. Os dois ícones iranianos reaparecem mais adiante, no santuário para a filha do Imam Hussein, construído com dinheiro de Teerã e as mesmas pastilhas de vidro que revestem o santuário de Qom, no Irã.
Baalbek é um enclave do Irã no Líbano. Sobre a casa bombardeada do xeque Mohamad Yazbek, número 3 na hierarquia do Partido de Deus, tremulam três bandeiras iranianas – mais do que todas as bandeiras libanesas que o Estado encontrou na cidade de 140 mil habitantes. Foi por causa de Yazbek que, no dia 2, comandos israelenses desceram de helicóptero e invadiram o Hospital Dar al-Hikma, pensando que ele estava internado lá. Como todos os hospitais e escolas do Hezbollah, considerados os melhores pelas comunidades xiitas, o Dar al-Hikma foi construído com dinheiro iraniano.
Baalbek é também o quartel-general – no sentido militar – do Hezbollah. Na cadeia de montanhas El-Hermel, que se ergue a leste, na fronteira com a Síria, o Hezbollah mantém o seu principal campo de treinamento. A 15 quilômetros da fronteira com a Síria, a cidade é o grande centro de recepção e distribuição de armamentos da milícia xiita.
O financiamento iraniano e o apoio logístico sírio são assumidos abertamente, por aqueles que apoiam o Hezbollah, como algo perfeitamente legítimo. “Os Estados Unidos mandaram mísseis ‘inteligentes’ – que não deram em nada, se revelaram burros – para Israel bombardear o Líbano, e ninguém diz nada”, analisa Abbas Termos, que foi candidato a deputado pela Amal, o partido xiita aliado do Hezbollah. “A Síria deixa passar as armas do Irã, apesar de ficar com metade para ela. O Egito (o outro vizinho árabe) não deixa passar nem ficando com a metade”, completa Termos, ilustrando a falta de opções do Hezbollah.
Transformado pela guerra no fator dominante da fragmentada política libanesa, como o único exército que conseguiu derrotar Israel, na leitura do mundo árabe-muçulmano, o Hezbollah é resultado de uma combinação bem-sucedida entre política, assistencialismo e força armada.
No campo político, a chave de seu sucesso está na união com a Amal. Durante a guerra civil libanesa (1975-90), os dois grupos xiitas lutaram entre si, a Amal apoiada pela Síria e o Hezbollah, pelo Irã. “Para mim, essa foi a pior guerra, irmão matando irmão”, recorda amargamente Termos, que morou em Foz do Iguaçu entre 1980 e 2001, quando voltou para o Líbano.
Depois da guerra, Irã e Síria decidiram unir forças. A Amal (resistência, em árabe) se desarmou – como todas as outras milícias com exceção do Hezbollah – e passou a dedicar-se apenas à política, enquanto o Partido de Deus manteve as duas frentes de atuação.
Hoje, Nasrallah se refere ao fundador da Amal, Mussa Sadr – que desapareceu misteriosamente na Líbia em 1978, mas cujo retrato figura em todos os redutos xiitas – como a um “professor”. E a Nabih Berri, líder da Amal e presidente do Parlamento, como a um “irmão mais velho”. Escondido durante a guerra, Nasrallah declarou que a negociação política do conflito estava a cargo de Berri. Juntos, eles têm 27% do Parlamento.
No campo militar, o Hezbollah dispõe de todo o armamento a que um grupo guerrilheiro pode aspirar: mísseis iranianos de até 120 quilômetros de alcance, mais que suficientes para atingir Tel-Aviv; milhares de foguetes russos Katiusha e respectivas bases de lançamento; fuzis russos Kalashnikov e americanos M-16, comprados no mercado negro de armas; e farta munição.
Mas o que talvez diferencie o Hezbollah seja o elemento humano. Durante a guerra, os combatentes se recusavam a se revezar na frente de batalha. Para eles, é uma oportunidade única de morrerem como mártires incontestáveis, levando para o paraíso a si mesmos e 16 familiares. Até mesmo suas mães se regozijam com sua morte. “Se Deus quiser, vamos para o paraíso”, disse ao Estado, na sexta-feira, a brasileira Saqiba Kourani, depois do enterro de seu filho Ibrahim Saleh, de 17 anos, morto lutando pelo Hezbollah.
Ao menos simbolicamente, esses 33 dias de guerra com Israel elevaram o Hezbollah, da condição de milícia xiita, à de conquistador árabe-islâmico, como quer o seu dístico impresso nas camisetas vendidas na porta da cidadela de Baalbek. E, talvez ainda mais significativamente, à de resistência nacional libanesa.
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