Por Carlos Eduardo Lins da Silva
Há quem ache que os jornais impressos diários vivem uma crise séria, que talvez até ameace o seu futuro, mas estudos de boa qualidade intelectual e sem desvios ideológicos sobre eles parecem estar florescendo na comunidade acadêmica brasileira.
É o que se pode depreender de duas teses recentemente defendidas que tratam de fenômenos históricos quase contemporâneos. Uma, de doutorado na Universidade de Londres, de autoria de Carolina Oliveira Mattos; outra, de mestrado na Universidade de São Paulo, feita pelo excelente repórter Lourival Sant’Anna.
O trabalho de Mattos trata da relação entre jornalismo (com ênfase no papel desempenhado pela Folha, “O Globo”, “O Estado de S. Paulo”, “Isto É” e “Veja”) e democracia política no Brasil entre 1984 e 2002. O de Sant’Anna, de como três jornais (Folha, “O Globo” e “O Estado de S. Paulo”) têm respondido às inovações tecnológicas, à queda de leitura e à concorrência com novos meios ao longo deste século.
O grande traço comum entre as duas monografias são seus marcos teóricos, que -embora não idênticos- distanciam-se da matriz que norteou a grande maioria dos estudos brasileiros sobre os meios de comunicação de massa na sociedade, derivada da inspiração (com freqüência distorcida) dos ensinamentos da Escola de Frankfurt.
Abordagem funcionalista
Lourival Sant’Anna, no seu prólogo, afirma de maneira direta e sem subterfúgios que, “embora autores europeus também sejam citados [na sua tese], predomina a abordagem funcionalista americana”. Mattos, em explanação mais longa e bibliograficamente bem embasada, diz “simpatizar com a visão liberal-pluralista da mídia e com a análise crítica político-econômica”.
Só o fato de que os dois operaram livres das amarras ideológicas que acorrentaram durante décadas a pesquisa sobre a mídia no país já significou um ponto de partida que lhes deu grande vantagem sobre muitos dos seus antecessores.
Mattos e Sant’Anna mostram-se preocupados em de fato conhecer e explicar a realidade, não em justificar preconceitos conspiracionistas de como grandes veículos de comunicação manipulam a consciência da população e ditam os rumos políticos da nação.
Diretas-Já
A tese de Mattos analisa com detalhes o período de fortalecimento da sociedade civil brasileira durante o processo da campanha das Diretas-Já e a importância da mídia -em particular da Folha– naquele momento histórico. Mostra como o Projeto Folha caminhou de uma proposta “revolucionária” (entre aspas mesmo pela própria autora) para um jornalismo dirigido ao mercado. Depois, estuda a consolidação da imprensa no livre mercado nos anos 1990.
Suas conclusões são sólidas, nada simplistas. Ela afirma que a “grande imprensa” deu uma contribuição para o avanço da democracia no país nas duas décadas em exame. E mostra como o mercado foi uma força a favor da inclusão de novos cidadãos na esfera pública, em grande parte via consumo de veículos de comunicação, que se tornaram mais acessíveis a eles.
Demonstra que a consolidação dos ideais liberais do jornalismo tem sido em geral positiva para a mídia e para a sociedade brasileiras. Mas ressalta as muitas contradições que existem em todo esse universo e nessa seqüência de situações que envolvem múltiplos atores. A mídia não é determinante sozinha de nada: influencia a sociedade e é influenciada por ela, tenta seguir modelos ideais, mas é atropelada pelas condições objetivas da realidade. Não há reducionismos maniqueístas nas conclusões de Mattos.
De certa maneira, Sant’Anna captura quase o mesmo objeto do estudo de Mattos (embora o de Mattos inclua também revistas semanais, a prioridade que ela dá aos jornais diários é indiscutível) no momento seguinte ao da consolidação da democracia e das leis do livre mercado no setor específico do jornalismo diário. Ou seja, durante e logo após a superação parcial da grave crise econômica que atingiu toda a indústria cultural brasileira no início do século 21.
Ele se concentra na questão-chave que aflige todos os apaixonados pelo jornal impresso diário: esse produto vai sobreviver nas próximas cinco ou seis décadas?; caso sobreviva, em que condições?
Conclusões precipitadas
Sant’Anna avisa com absoluta razão: “Este é um campo no qual conclusões precipitadas não são aconselháveis”. Constata que há os que já decretaram a morte dos diários, até com data marcada, e os que estão convencidos de sua eternidade. “A verdade provavelmente reside em algum ponto, entre os dois extremos”.
Por isso, diz Sant’Anna, suas conclusões, menos do que conclusões, são mediações entre profecias. Recomenda que os jornais mudem para se manter úteis no mercado de informações. Dá-se conta de que isso não será tarefa fácil. Verifica que os ativos que o diário acumulou em mais de cem anos de história não são desprezíveis nem triviais, do ponto de vista da sociedade, dos anunciantes, dos agentes públicos. Isso lhes dá uma base boa para garantir sobrevida de qualidade. Mas nada é garantido.
O que importa, menos do que acertos e erros das conclusões desses dois trabalhos, é que eles mostram que a academia pode contribuir para a compreensão mais acurada do universo da indústria cultural brasileira e, em conseqüência, para o seu aprimoramento, do qual resultará alguma melhoria para a sociedade.
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