Monge de guerra

Ricardo Chapola e Juliana Bragança

O bom jornalista não se vê: ele se mistura ao ambiente, camufla-se entre multidões, dilui-se como café no leite. Ele pode ser ora palestino, ora georgiano, ora líbio, ou ora um brasileiro, nascido na agreste Goiânia e ‘Gasparzinho da notícia’ desde 1986. Lourival Sant’Anna é jornalista especial, tão especial quanto é no próprio nome: não é simplesmente Santanna, mas primeiro ‘Sant’, seguido de apóstrofe e arrematado com ‘Anna’ – em maiúsculo. Estava a recortar jornais velhos logo que entramos no lugar – por formalidade chamado de sala – feito nas justas medidas para uma mesa, pilhas de jornais velhos e três cadeiras, duas delas ocupadas por nós. Mais nada.

Lourival levou algumas tesouradas antes de dar sinais claros de que tinha notado nossa presença. Quando pegou o terceiro ou quarto calhamaço de papel velho e nós partíamos para talvez a quinta pergunta da entrevista foi que ele descansou a tesoura e dedicou os dedos – os mesmos que estavam engatados nas argolas do instrumento – para gesticular suas histórias, e os olhos para consolar dois jornalistas que até ali se pensavam ignorados.

Largou a tesoura para fazer como se pegasse um fuzil: com a mão que estava ocupada, pôs no gatilho; a outra, no cano. “Eu tenho medo de morrer”. Lacônico, mas profundamente humano. Apesar de especial no ofício, não leva a benesse para condição de homem: morre tanto quanto nós, quanto você, leitor. Por isso, Lourival não fez a mínima de ser franco e admitir que sentiu medo quando  teve o fuzil no peito, quando esteve em fogo cruzado, ou com uma pistola na cabeça, ou  de  ter ficado sob bombardeios. Os filhos – um de onze, outro de 9 – o fazem assim, tirando-o os bloquinhos da mão, o relógio-bússola do pulso e a neurose bélica da qual depende para trabalhar da cabeça.

“Pai, cuidado para não ser atingido por um morteiro”, avisam, tão familiarizados que já conseguem usar até jargão de guerrilheiro – e também de jornalistas de guerra, como o pai, que prefere não usar colete a prova de balas. Disso eles nem devem saber.

Lourival vive nesta encruzilhada desde 2001, quando assumiu a cadeira de repórter especial no jornal O Estado de S. Paulo.

Não assina como especial por acaso. Tem bom lide, boas histórias e ouvidos mais aguçados que o comum. Para gente. E para bala. Reconhece armas por silvos que cortam o ar, e foguetes pela rabiola de fumaça que desenham no céu. É capaz de dar uma aula sobre arsenais em 5 línguas – inglês, espanhol, alemão, italiano e francês, arranhando um árabe se quiser –, sem mesmo saber sequer apertar um gatilho – só o de seu fuzil imaginário, que já tinha ido para o beleléu. Ali mesmo, em português, mostrou ser exímio, quase Phd, em foguetes, sabendo que, por exemplo, nunca se deve soltar um RPG (Rocket Propelled Grenade), um foguete portátil, com a boca fechada.O risco é de surdez.

Balançamos a cabeça como bons alunos, mas como maus não aplicaríamos aqueles macetes, aprendidos na base da observação de muitos lançamentos bem e mal sucedidos.

Tornou-se enciclopédico no quesito após muitos ‘booms’. De muitas explosões que arrasaram mesquitas, hospitais e aviões. De muitas construções que caíram por terra e pessoas que, se não caíram junto, voaram para o céu. As maiores, se lembra, foram resultado do maior arsenal que já vira: o dos EUA, no Afeganistão e no Iraque, capazes de… Bem, capazes de fazer aquilo que vimos.

“E tem os foguetes que são em baterias, esses da Líbia são os GRAADs, que são russos, e que são baterias de doze ou múltiplos de doze, podem ter 96 foguetes. São coisas gigantescas e muito assustadoras”.

Notou que estávamos assustados. Desfez-se das mímicas para voltar aos recortes.

Cobrir guerras não lhe soa em nenhum momento como surpreendente. Reage da mesma maneira como se tivesse que ir a uma passeata, apurar votação no Congresso ou mesmo acompanhar um jogo do Corinthians. Aliás, Lourival mostra não discernir os limites entre o que faz e a Política, campos fronteiriços demais, se não mutuamente invasores. Diz isso, porque deve utilizar de uma máxima de um grande militar da Prússia, Carl Von Clausewitz, para convencer os céticos da legitimidade do seu trabalho: “A guerra é a continuação da política por outros meios”.

Lourival Sant’Anna, em setembro de 2011, no front de Bani Walid – Líbia/ Arquivo Pessoal

 Os dois “eus”

Conhece a autoridade do que cobre, ao mesmo que tenta não ostentar a importância de sua profissão – de ser especial além de tudo. Mas apesar do nobre título – que vem até em itálico e negrito na assinatura – , prefere se colocar nos degraus mais baixos da pirâmide, sem deixar, no entanto, de dividir sua identidade em duas: o Lourival jornalista e o Lourival humano.

A bipartição foi recente.

Aconteceu no Haiti. Lourival dirigia por entre corpos estirados e uma destruição que se estendia para além de qualquer horizonte ensolarado. Enquanto isso, escutava o rádio para ter informações sobre o epicentro do segundo terremoto que havia castigado a ilha Hispaniola – muito espantou sua facilidade em armazenar dados de difícil compreensão, dentre eles, nomes em árabe. Grandes bizarrices! Depois do noticiário, a programação foi música clássica, como pás de terra sobre as milhões de vidas que se foram com o tremor. “Eu desliguei o rádio e falei assim: ‘eu não posso ouvir essa música se não eu vou me humanizar’”.

Só então descobriu que do pé de jornalismo plantado nos quintais de sua vida, caiu seu segundo “eu“, frio, cético, calculista, racional, e ‘amante’ da música dos tiros, não da clássica. “Eu fico concentrado na informação, nos tiros, para que lado que estão. Isso me distrai e eu não fico pensando no perigo ou nos corpos”.

Ver pessoas mortas está quase igual a ver vivos. Até porque cadáveres são frutos de guerra, queiramos ou não. É preciso não só estômago para defuntos já bem frios, mas estar preparado para ver uma cabeça estourar, uma bala perfurar a barriga, uma bomba fazer chover retalhos de gente. É preciso blindagem contra a comoção, ao Lourival pai de dois filhos, humano. Barrar forças sentimentais que nadam contra a corrente do seu dever: redigir um texto com informações precisas, puras e claras. Dar voz só a um de seus dois “eus”.

 

O humano

Com a mesma tranquilidade de monge beneditino que tinha ao picotar suas matérias – a mesa estava repleta de tiras de papel em meio das quais o gravador sumiu – Lourival contou dos mortos da Líbia, empilhados feito os seus jornais – e apontou para eles. Fez uma pausa, talvez em respeito, e lembrou de uns africanos que foram para a pilha depois de serem metralhados enquanto recebiam soro nas tendas de enfermagem – outro silêncio, só a tesoura não se calou.

As memórias de Lourival são assim mesmo, uma lambança gustativa, em que lembranças amargas, salgadas, doces e ácidas convivem num mesmo prato, como num grande fiasco gastronômico. Ao lado de seus sonhos com a Fotografia – sempre quiser ser fotógrafo –, do que comeu no almoço de ontem, Lourival carrega, do Haiti, um dos maiores choques de sua vida: cadáveres à trato de entulho, recolhidos por escavadeiras, quando se deparou face a face com menor distância a que pessoas foram colocadas do desprezo. “Foi muito desconcertante”, disse ao localizar outra matéria e de suspirar profundamente.

Parte dos seus vinte anos de jornalismo está registrada em carimbadas coloridas em seu passaporte. Está em sua familiaridade com a impronunciável língua árabe e suas cidades – como se diz? Omar al-Ghuzayl, Ras Ajdir, Benghazi, Kalashnikov, Bab al-Azizia? Está na dupla cidadania, italiana e brasileira. E está praticamente toda enraizada no Oriente Médio, entre a mistura desagradavelmente imiscível de petróleo e sangue.

 

O jornalista especial

Lourival Sant’anna não deixa de levar fotógrafos nas pautas por inveja, como boicote àqueles que são aquilo que já quis ser. Não leva pela camuflagem. Jornalistas são chamativos, uma gota d’água que cai na superfície calma de um lago. Modificam o ambiente, o que para o próprio jornalista é uma grande desvantagem. Por isso, abaixou os fotógrafos e toda a sua parafernália que torna o disfarce igual a tentar esconder um elefante atrás de um poste. “Muitas das coisas que eu consigo fazer é porque ninguém acha que tem um jornalista ali”.

Só então quando pode, ele próprio saca sua Canon e se deleita ao virar fotógrafo no curto espaço de tempo que é cada milésimo que dura um flash. A máquina é uma companheira. Está sempre na mochila. Em uma delas. São duas. Só duas.

Na primeira, junto com a Canon, carrega o telefone via satélite, um binóculo e o relógio multiutilidades, quase igual ao cinto do Batman. Tudo em prol da exatidão das informações ao leitor, proporcionando aproximação com o público. Sem falar em garantir sua própria segurança.

Numa única outra, bem parecidas às nossas malas de viagem de férias de final de ano, apesar do racionamento, dedica para seus utensílios pessoais: tênis – impermeável – e poucas mudas de roupa. “Eu lavo minhas roupas todos os dias, lavar roupa faz parte do banho”.

Quando disse impermeável, olhamos seus pés, para ver se os vestia. Mas não.

É um corredor. Por isso também a leveza na bagagem. Não há mordomias quando os aviões que se vê não são apenas um meio de transporte, e sim poderosas máquinas de matar. Ganhou gosto pela coisa, em correr, correr e correr. Pelas manhãs, aproveitando o sono dos terroristas e da trégua dada pelo pânico, se exercita – sem o Ipod no ouvido – por quarteirões solitários, às vezes com um ou outro morto com que topa nas esquinas. Se não houver trechos de paz, um local disponível para uma corrida, sobre e desce escadas. É importante não somente para o Lourival humano, manter em forma também seu lado especial, mesmo porque seu trabalho envolve fugas histéricas, preservação da vida, sejam as mochilas leves ou escandalosamente pesadas. O texto deve ser escrito, e não deve ser memória póstuma. Corre para fugir da morte, que rola solta, tal como um leão faminto nas savanas africanas. Bobeou, dançou.

O telefone tocou. Só assim a tesoura ficou muda. “Alô, filho? Papai está indo”. O Lourival pai precisava correr: pegar o caçula na casa da mãe. Sem mochila, sem máquina, sem bloquinhos, sem a morte no encalço, sem corpos espalhados pelo chão. Só com o Ipod, ao som de uma bela música clássica.

Publicado no blog Ricardo Chapola · Cotidiano em crônicas.

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*