Vida de repórter em geral é um estresse; não pode ser levada por quem tem nervos e coração fracos. A rotina desse profissional inclui normalmente correr atrás da fonte ou da notícia, temendo que o concorrente tenha conseguido uma declaração mais bombástica ou uma informação mais importante, e em seguida voar para a redação a fim de escrever a matéria antes que o editor lhe grite: “Olha o deadline!” (Não é para menos que no jargão jornalístico o prazo para a entrega do texto se chama “prazo fatal”, ou, em tradução literal, “linha morta”: se o repórter não cumpri-lo a tempo, todo o seu esforço vai literalmente para o lixo. E sua reputação corre o risco de ir junto.)
Contudo, se levarmos em conta as experiências de certos repórteres em certas reportagens, esse dia-a-dia das redações nos parecerá uma realidade bastante amena. É o que mostra a coleção Vida de repórter, da Geração Editorial. Nos quatro primeiros volumes da série já dá para sentir o clima. No livro que dá nome ao projeto, José Maria Mayrink narra inúmeros episódios de seus 40 anos como jornalista. Um deles, por exemplo, é a morte do líder guerrilheiro de esquerda Carlos Marighella:
“Corinthians e Santos jogavam no Pacaembu, a redação estava quase vazia na noite de 4 de novembro de 1969, quando chegou a notícia da morte de Carlos Marighella. Mandaram-me correndo para a Alameda Casa Branca, nos Jardins, onde o líder da Ação Libertadora Nacional acabara de ser baleado. Fui o primeiro repórter a chegar ao local… O corpo de Marighella estava caído no banco de trás de um Volkswagen, o sangue correndo pela boca…”
Percorrendo estradas minadas em El Salvador, vendo suas matérias ser censuradas pela ditadura (a redação as substituía por trechos de Os Lusíadas; ao longo do tempo foram tantos os textos censurados que o clássico de Camões chegou a ser publicado duas vezes, na íntegra), sendo exaltado num dia como “repórter da alma”, por causa de uma dada reportagem, e reduzido a “baixinho asqueroso” no outro, por conta de outra matéria, Mayrink deixa claro em Vida de repórter que levou uma vida incomum e aventureira, testemunhando a história no momento mesmo em que ela era feita.
A certa altura do prefácio que assina para Viagem ao mundo dos Taleban, de Lourival Sant’Anna, livro que dá seqüência à série Vida de repórter, o diretor-responsável do jornal O Estado de São Paulo, Ruy Mesquita, fala do “cenário onde se travaria a guerra entre a mais formidável potência tecnológica da Terra e um dos povos mais pobres e atrasados que habitam o planeta”. Foi no Afeganistão que Sant’Anna começou a sentir na pele o seu livro antes mesmo de escrevê-lo. Ele estava entre os primeiros (e poucos) jornalistas ocidentais a penetrar no território afegão, logo após o atentado de 11 de setembro. Lá, ele procurou entrevistar os integrantes do regime dos Taleban; buscou, principalmente, com humildade e isenção, compreender as motivações e reações daquele povo tão diferente dos ocidentais. Foi assim que começou a descobrir que, a despeito de costumes, religiões ou convicções diferentes, todos os homens são, literalmente, iguais. Em qualquer um pode nascer o gesto gentil, a delicadeza e o carinho. De todas as mensagens do livro, essa é a que mais emociona.
Já Klester Cavalcanti foi amarrado a uma árvore, no meio da floresta, e lá abandonado para morrer. Felizmente, escapou. Caso contrário, não teria escrito Direto da selva – as aventuras de um repórter na Amazônia, o terceiro livro da série. Ao mesmo tempo que desnuda os graves problemas sociais que assolam aquela região, a exploração indiscriminada dos recursos naturais e a corrupção dos órgãos fiscalizadores, Klester consegue manter um grande bom humor, ao contar tudo que passou na selva amazônica, dando ao leitor a oportunidade de conhecer de perto, ou melhor, de dentro, uma realidade totalmente ignorada pela grande maioria dos brasileiros.
Fecha a seqüência da série Vida de repórter o livro Viva o grande líder! – um repórter brasileiro na Coréia do Norte, de Marcelo Abreu, único jornalista brasileiro a conseguir entrar naquele misterioso e fechadíssimo país. Na pele de agente de uma ONG (se descobrissem que era jornalista, seria imediatamente preso e dificilmente o Brasil conseguiria resgatá-lo), Marcelo se infiltrou no último país ainda sob o jugo do comunismo nos moldes stalinistas. O comitê de recepção norte-coreano era composto por um guia, mais um acompanhante do guia (na verdade, um policial disfarçado) e um motorista. Esse disparate, de um visitante ser seguido por três acompanhantes, é o primeiro de uma série que começa a se avultar como num quadro surrealista, carregado de tons cinzentos e desolado. As ruas e estradas larguíssimas em contraste com os poucos carros e os prédios gigantescos em oposição ao escassos transeuntes nas vias públicas são as esquisitices mais visíveis. Logo, outras começam a aparecer.
Marcelo nota que toda vez que chega a um prédio a ser visitado, seus guias transmitem aos responsáveis pelo lugar o porquê de sua presença ali. Aí então todos se revelam pessoas produtivas, altamente interessadas no que estão fazendo. Aos poucos, porém, a máscara vai rachando e deixando aparecer a realidade por trás da fachada dos eficientes trabalhadores: pessoas representando uma vida inverídica. Em algumas delas, o repórter chega a perceber uma enorme vontade de entrar em contato com o visitante desconhecido, mas um medo maior ainda paralisa a todos e frustra o diálogo.
Outro aspecto intrigante destacado por Marcelo é o culto maciço a Kim II Sung, fundador do Estado norte-coreano e líder absoluto da nação por quase meio século. Hoje em dia essa mesma veneração se volta também para seu filho, Kim Jong II, que, com a morte do pai, subiu ao poder, inaugurando a primeira dinastia comunista da História. Para se ter uma idéia, praticamente todas as músicas que tocam nas rádios, todos os filmes que passam no cinema, assim como os letreiros de fachada, cartazes e jornais fazem sempre referência à grandiosidade dos dois líderes ou às suas idéias (as estradas e prédios de aspecto grandiloqüente são decorrências disso).
Por meio de um controle eletrônico da atmosfera, todas as emissões de rádio e tevê de fora do país são barradas, de modo que só se ouve e se vê o que é produzido na rádio e na tevê estatais, sob supervisão do governo. Ou seja, o povo vive num isolamento absoluto, num mundo artificial e paranóico. Ao término da leitura, fica a sensação de que visitamos um Estado onde tudo funciona como num pesadelo de Kafka.
A coleção Vida de repórter traz de volta a “grande reportagem”, aquela em que o repórter “suja” as mãos contando, na primeira pessoa do singular, suas emoções, medos e alegrias. É exatamente isso que torna esse tipo de matéria algo mais humano e, conseqüentemente, mais impactante e interessante. Banida dos jornais, que entronizaram a notícia curta, seca e impessoal (como diz o editor Luiz Fernando Emediato: “Vivemos dias em que as enchentes em São Paulo são interpretadas pelos quilômetros de congestionamento; os grandes desastres, pelo número de mortos; o futebol, pelo tempo em que um time esteve com a posse de bola”), a grande reportagem encontra nos livros da série o meio ideal para mostrar que, além de revelar aspectos desconhecidos de um assunto, também serve para patentear que por trás de qualquer informação, mesmo a mais técnica, existe a dimensão humana. Que é a que mais importa.
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