O Estadão me pediu para apontar o principal acontecimento internacional da década que termina. Não há dúvida de que o grande fenômeno do nosso tempo é a ascensão da China. Ela se consolidou na última década. Mas não é um fato novo: é algo que evolui desde os anos 80. A grande notícia da década é uma resposta à China: Donald Trump.
O ano de 2016 foi marcado não só pela eleição de Trump, mas também por outro fato que desde então dialoga com ela: o plebiscito do Brexit. Os dois se desdobraram, este ano, na vitória conservadora, sob a liderança do primeiro-ministro britânico Boris Johnson, e na abertura do impeachment contra Trump. E se desdobrarão novamente em 2020, com a saída britânica da União Europeia e as eleições americanas.
As vitórias de Trump e do Brexit foram respostas à mesma ruptura: o fechamento de vagas na indústria e na mineração, e a migração dos trabalhadores de baixa escolaridade para o setor de serviços, sob condições mais precárias.
Políticos como Trump, Johnson e Marine Le Pen, que obteve 34% no segundo turno da eleição presidencial francesa em 2017, foram hábeis em responsabilizar a China e o livre comércio por essas perdas.
Como observou Matthias Fekl, ex-ministro do Comércio Exterior da França, foi exatamente nos dois berços do liberalismo, Estados Unidos e Reino Unido, que a rejeição a esse modelo teve maiores consequências políticas.
Consequências que vão muito além dos cenários político e econômico desses dois países e da própria União Europeia. O tipo de liderança representado por Trump e Johnson (que encabeçou a campanha em favor do Brexit) introduz uma importante mudança cultural, algo com repercussões mais amplas e mais profundas.
Eles partem de experiências distintas. Trump vem do mercado imobiliário e da televisão. A presidência é seu primeiro cargo público. Johnson começou no jornalismo, cobriu a União Europeia para o Daily Telegraph, foi prefeito de Londres e deputado.
Ambos têm em comum a defesa dos setores produtivos nacionais, sem a explicitação de um conflito entre empresários e trabalhadores. É nesse ponto que eles conseguem reunir o apoio de dois setores que não costumavam marchar juntos para as urnas. A esquerda se perdeu ao manter o foco na dicotomia patrão/empregado, conforme a prescrição do sindicalismo clássico, e na fórmula mais impostos, mais serviços públicos.
Em Trump e Johnson, não há esses conflitos. Parece que o Estado pode ser ao mesmo tempo mínimo e protetor. E, com a pressão certa, as empresas farão o que é melhor para os trabalhadores. O conflito foi deslocado das velhas classes sociais e do debate sobre o Estado para “inimigos comuns”: a esquerda, a mídia, os imigrantes, os chineses, os políticos e burocratas.
Os conceitos se embaralharam. As relações entre causas e consequências perderam nitidez. As decisões ganharam um forte componente de improviso. As cobranças de coerência são rechaçadas com ataques aos adversários e aos jornalistas. O debate se deslocou da qualidade dos argumentos e dos índices para a legitimidade e a idoneidade do interlocutor.
Num ambiente de vale-tudo, a intimidação, o bullying, a grosseria, o preconceito e a falta de limites ganharam licença. Trump, Johnson e outros líderes neles inspirados encarnam um novo modelo de comportamento em público, antes censurado. O superego, ridicularizado como “politicamente correto”, e a empatia, estigmatizada de “vitimização”, caíram em desuso. Há um palco para esse “espetáculo”: as redes sociais.
Qual o tamanho e a duração dessa onda? As vitórias de Trump e do Brexit em 2016 foram por margens ínfimas. Já a de Johnson, no dia 12, foi folgada. Se as eleições fossem hoje, Trump não teria dificuldades em vencer. De qualquer forma, resultados eleitorais não contam toda essa história. Estamos, como digo, diante de um fenômeno cultural. Ele veio para ficar.
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