A democracia e o mundo árabe-muçulmano

O jornalista saudita Jamal Khashoggi durante evento do Monitor para o Oriente Médio, em Londres, na Grã-Bretanha, em setembro de 2018.
Foto: Middle East Monitor/Handout via REUTERS

O pretenso “ímpeto modernizador” do herdeiro do trono saudita, Mohamed bin Salman (MBS), foi até a página 2. Bastou que as críticas ao regime, ainda que moderadas, de um jornalista saudita, ganhassem as páginas de um grande jornal ocidental, The Washington Post, para que o homem forte de Riad mostrasse a sua verdadeira face impulsiva, autoritária e perversa.

Como costuma acontecer no mundo árabe, não bastava, para que o príncipe reafirmasse seu poder, silenciar Jamal Khashoggi — o que já seria injusto. Era preciso fazê-lo com crueldade. O poder, na cultura árabe-muçulmana, assim como em outras sociedades autoritárias e violentas, está associado à onipotência, à falta de limites.

Em sua última coluna para o Post antes de ser, ao que tudo indica, covardemente torturado e esquartejado no consulado saudita em Istambul, Khashoggi observou que, no relatório “Liberdade no Mundo 2018”, da Freedom House (centro de estudos de Washington), apenas um país árabe figura como “livre”: a Tunísia, berço da Primavera Árabe. 

Jordânia, Marrocos e Kuwait são classificados como “parcialmente livres”. O restante dos países árabes, prossegue o colunista, foi tachado de “não livre”. Mesmo o Líbano, “a jóia da coroa do mundo árabe no que se refere à liberdade de imprensa, é vítima da polarização e influência” da milícia xiita Hezbollah, patrocinada pelo Irã e pela Síria.

Khashoggi cita a desilusão da Primavera Árabe no Egito, que voltou à ditadura militar disfarçada. Eu, que cobri esse movimento na Tunísia, Egito, Líbia e Síria, tenho vontade de chorar quando lembro de tantos “shabab” (“jovens”, em árabe) que conheci, que morreram ou arriscaram tudo o que tinham lutando por liberdade e dignidade, com resultados — limitados — apenas para os tunisianos.  

O texto do jornalista saudita se restringe ao mundo árabe. Eu iria além. No mundo muçulmano não-árabe, a situação não é mais animadora. A Turquia abandonou seu curto flerte com a verdadeira democracia para mergulhar de novo no autoritarismo. Irã e Afeganistão tiveram democracias apenas de fachada, sempre com repressão brutal.  Mesmo com aparência de democracia, Paquistão, Bangladesh, Indonésia e Malásia não conseguiram construir sistemas livres da influência dos militares e de líderes autoritários.

Eu encaro a religião como parte da cultura. O Islã é fruto da cultura árabe, que, por meio da religião, influi nos valores de sociedades muçulmanas não-árabes, em sua origem também patriarcais, autoritárias e tribais. O tribalismo, por sinal, é o traço comum com a África Subsaariana, seja muçulmana, cristã ou animista, que também não alcançou a democracia. Teoricamente, o Islã não seria incompatível com a democracia, e talvez algum dia ela floresça nas sociedades muçulmanas. Mas este é o estado atual das coisas.

Em seu artigo, Khashoggi associa a falta de democracia no mundo árabe à ausência de liberdade de expressão e à desinformação produzida pelos órgãos estatais de propaganda. De fato, na minha análise, o que possibilitou a Primavera Árabe foi a proliferação de antenas parabólicas com centenas de canais em árabe, que furavam o bloqueio e distorção da informação pelos canais estatais. 

Khashoggi elogia o papel do Catar, que mantém o canal Al-Jazeera — mais uma observação que teria enfurecido MBS, que no ano passado rompeu com o Catar, acusando-o de ligação com o Irã, rival regional da Arábia Saudita.

Nos países autoritários, a proliferação de mentiras pelos celulares e pelas redes sociais ainda não é um problema. Eles estão em um momento anterior, de controle estatal da mídia. A internet representa o contrário: uma possível plataforma de distribuição de informação livre e de mobilização popular. Por isso sofre censura.

Mas o diagnóstico de Khashoggi vale para os países livres, no sentido de que o enfraquecimento do jornalismo profissional e independente, com o deslocamento da audiência e das receitas publicitárias para as redes sociais, é uma ameaça à democracia. 

A força da democracia e da liberdade está no diálogo, na negociação e na informação. A manipulação por meio da desinformação leva à polarização, ao fim do diálogo e da negociação e, se essa dinâmica não for contida, ao autoritarismo.  

Aqui há um segundo aspecto que tangencia a realidade árabe-muçulmana: essa manipulação encontra terreno fértil em culturas nas quais a tolerância não é um valor solidamente enraizado. Parece ser o caso do Brasil, neste triste capítulo de sua história.

Publicado no Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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