Tanto no campo da segurança pública quanto no da política externa, há muitas lições para serem tiradas aqui
Ufa! Os Jogos Olímpicos terminam, sem um incidente sequer relacionado com o terrorismo. Isso é resultado da combinação de duas coisas: a eficiência e o rigor dos serviços de inteligência e das autoridades de segurança antes e durante os Jogos e a incapacidade dos grupos terroristas de recrutar militantes no Brasil em quantidade e qualidade suficiente para representar uma ameaça. Tanto no campo da segurança pública quanto no da política externa, há muitas lições para serem tiradas aqui.
A mobilização e a coordenação das diversas forças de segurança foram muito superiores à ameaça. Isso se mede simplesmente pelo resultado: os incidentes, mesmo no nível da criminalidade comum, foram praticamente insignificantes, levando em conta a quantidade de estrangeiros reunidos no Rio. Mesmo que o assalto aos nadadores americanos tivesse de fato acontecido, convenhamos, em uma cidade com o nível de violência do Rio, seria um golpe na imagem, em razão da repercussão, mas, tecnicamente, não significaria o fracasso do esquema de segurança.
Milhares de visitantes circularam pela cidade e saíram com a impressão de que seu charme e beleza natural compensam os problemas de organização e de segurança. Portanto, o esquema de segurança cumpriu o seu papel, que não era o de transformar o Rio em uma Estocolmo, mas apenas de mitigar as ameaças latentes.
Por outro lado, os grupos terroristas gostariam de ter realizado um grande ataque a uma das delegações ou grupos de turistas dos países que elegeram como alvos, e estavam presentes aqui em grande número. Mas não chegaram sequer ao patamar de uma ameaça efetiva. As prisões realizadas antes dos Jogos não teriam ocorrido na França ou nos Estados Unidos, considerando o nível de despreparo dos suspeitos. Eles não representavam ameaças reais. Mas as autoridades julgaram que, dada a falta de experiência da inteligência e das forças de segurança do Brasil com o terrorismo, era preciso reprimir preventivamente ao menor sinal de intenção de cometer um ato terrorista, e pecar por excesso, não por omissão.
A dificuldade dos grupos terroristas de recrutar no Brasil está relacionada com o fato de o país estar distante dos conflitos que despertam os ressentimentos que por sua vez servem de seu combustível. Temos, no Brasil, uma comunidade libanesa, de imigrantes e descendentes, que representa o dobro da população do Líbano. Parte deles é cristã e parte muçulmana. Parte veio há décadas, parte acaba de chegar. Mas a cultura brasileira tem uma forma de assimilar os estrangeiros que desarma qualquer impulso xenofóbico: sentimentos infantis de curiosidade, valorização e até de gratidão por ter escolhido o Brasil suplantam a rejeição do outro. Isso é um patrimônio do Brasil, que outros países não têm, e precisa ser preservado. É algo afetivo, que compõe o nosso “poder brando”, como nação. Os Exércitos mais poderosos do mundo gostariam de ter a capacidade de empatia com a população local, demonstrada pelos militares brasileiros nas violentas favelas de Porto Príncipe, Haiti.
Na Olimpíada, assim como na Copa do Mundo e, em última análise, todos os anos, no Carnaval, os brasileiros demonstram sua imensa capacidade de mobilização e coordenação, uma energia oculta que só se manifesta nos grandes eventos. Por que isso não pode ser incorporado ao cotidiano? Por que a Polícia Civil não demonstra, no dia a dia dos crimes comuns, a mesma presteza que exibiu ao desmascarar os nadadores americanos, ou mesmo ao desvendar os crimes de grande repercussão? Não é por falta de capacidade, mas de desejo. No caso de parte da polícia, claro, há um interesse de extorquir os criminosos e vender serviços às vítimas, por meio de empresas de segurança privadas muitas vezes ligadas a delegados e policiais. Mas isso só é socialmente aceito porque há uma acomodação na nossa cultura.
O desafio dos brasileiros, então, é assimilar o ganho que existe na organização e na cobrança de resultados, sem perder os traços afetivos da nossa personalidade coletiva, associados à curiosidade e à valorização do outro. Há, aqui, uma questão de autoestima. O sentimento básico dos brasileiros perante os outros países é de inferioridade. De vez em quando, para compensá-lo, há um fervor nacionalista superficial, expresso no hino “sou brasileiro, com muito orgulho e muito amor”. No dia a dia, esse orgulho e amor não se expressam na mobilização, organização e cobrança em favor do bem comum, mas apenas em situações especiais, como a do Carnaval. Os brasileiros precisam se convencer de que não são inferiores, são capazes, já provaram isso, e de que vale a pena incorporar ao cotidiano o nível de excelência – que não é perfeição, porque ela não existe – demonstrado nos grande eventos.
Esse devia ser o principal legado dos Jogos Olímpicos.
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