Até outro dia, Grã-Bretanha e Estados Unidos eram as democracias mais antigas e mais estáveis do mundo. Agora elas são apenas as mais antigas. O primeiro-ministro britânico é acusado pela Corte Suprema de induzir a rainha da Inglaterra a suspender ilegalmente o Parlamento. O presidente americano é submetido a um processo de impeachment por colocar seu interesse pessoal acima do interesse nacional.
A história começa não com Trump, mas com um filho do então vice-presidente Joe Biden. Em 2014, Hunter Biden se tornou membro do conselho de administração da Burisma, maior empresa privada de petróleo e gás da Ucrânia.
Envolvida em casos de corrupção — problema endêmico na Ucrânia —, a Burisma afirmou precisar de executivos internacionais para introduzir práticas de governança na empresa. Hunter ficou no conselho até este ano e recebeu US$ 850 mil, por meio da empresa de um sócio.
Quando era vice-presidente, Biden pressionou o governo ucraniano a demitir o então procurador-geral Viktor Shokin, cuja equipe investigava o envolvimento da Burisma com corrupção. Shokin era acusado, ele próprio, de corrupção. Caso contrário, o governo americano bloquearia ajuda de US$ 1 bilhão para a Ucrânia. Aliados dos EUA e o Fundo Monetário Internacional fizeram pressões semelhantes, e Shokin caiu.
Não surgiram, até agora, evidências de envolvimento de Hunter Biden em corrupção. Os republicanos, no entanto, viram nessa história uma oportunidade de virar a mesa.
Em julho, um dia depois da apresentação do relatório do procurador especial Robert Mueller sobre a investigação dos vínculos de Trump com a Rússia e sua interferência nas eleições de 2016, ele telefonou para o recém-eleito presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky. Antes de telefonar, suspendeu uma ajuda de US$ 391 milhões para a Ucrânia se defender da contínua ameaça russa, aprovada pelo Congresso.
No telefonema, conforme a transcrição fornecida pela Casa Branca, Trump diz que os EUA têm ajudado a Ucrânia muito mais que a Europa e que precisa de um favor: que Zelensky “ou seu pessoal” conversem com o procurador-geral William Barr e com seu advogado pessoal, Rudolph Giuliani, e reabra as investigações sobre Biden.
O governo ainda tentou evitar que o alerta de um agente na Casa Branca chegasse à Comissão de Inteligência da Câmara, a quem cabe fiscalizar as ações do Executivo nesse campo, conforme prevê a lei.
A Rússia é um dos principais inimigos dos EUA; Biden, um dos principais rivais de Trump na corrida presidencial. É nesse sentido que se argumenta que Trump trocou o interesse nacional pelo pessoal.
O pedido de impeachment é aprovado por maioria simples na Câmara. Os democratas já têm votos suficientes. No Senado, são necessários dois terços, o que significa que 20 dos 53 republicanos teriam de aderir. Isso é hoje impensável.
A melhor estratégia para os democratas seria estender ao máximo o caso na Câmara, para colocar a maior fatia possível do eleitorado contra o presidente e assim constranger os senadores a se voltar contra ele. Trump não é do tipo que sofre calado. O cenário provável é de terra arrasada, nesse mais de um ano de campanha até novembro do ano que vem.
O objetivo de Johnson ao suspender o Parlamento, há um mês, era ter liberdade para ameaçar a União Europeia com uma saída sem acordo — como se isso não fosse pior para o seu país do que para o bloco. A maioria dos parlamentares rejeita essa possibilidade.
A Corte Suprema anulou a suspensão por unanimidade, com base em uma lei de 1611, segundo a qual “o rei não tem prerrogativa a não ser aquela que a lei da terra lhe concede”.
Os relatos demonstram por si só que as instituições desses dois países são mais fortes do que seus governantes. Instabilidade não significa ruptura. Mas perturba.
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