A Venezuela esteve no topo das conversas de Mike Pence, vice de Trump, na América Latina; americano foi à Colômbia, à Argentina e ao Chile, mas evitou Brasília
O regime venezuelano deu na sexta-feira um importante passo na execução de seu plano de permanência no poder. A Assembleia Nacional Constituinte, composta exclusivamente por chavistas, assumiu os poderes da Assembleia Nacional, de maioria oposicionista. Esse era um dos principais propósitos da convocação da Constituinte, e a sequência dos acontecimentos mostra claramente por quê.
Em dezembro de 2015, a oposição venceu as eleições parlamentares e obteve dois terços das cadeiras da Assembleia Nacional. Aquela eleição marcou o fim do domínio dos chavistas, que até então haviam vencido quase todas as votações desde a eleição de Hugo Chávez à presidência, em 1998, com exceção do plebiscito de 2007 que permitia ao governo expropriar os bens da população.
A morte de Chávez e a queda brutal do preço do petróleo, acompanhada do desabastecimento, já surtiam efeitos políticos. De lá para cá, a escassez se aprofundou e a popularidade do sucessor de Chávez, Nicolás Maduro, foi ao chão.
Por isso, o regime não realizou mais eleições livres e diretas. Passou por cima do prazo das eleições estaduais, que deveriam ter ocorrido em dezembro do ano passado, e do referendo revogatório do mandato de Maduro, que pela lei teria de ter sido feito no ano passado, já que a oposição reuniu as assinaturas necessárias. Este ano também não convocou as eleições municipais, como previa a lei.
Em lugar disso, realizou a votação para a Constituinte sob regras inteiramente novas. A proporcionalidade entre população dos municípios e número de deputados foi eliminada, para dar maior peso às cidades menores, mais suscetíveis ao poder econômico e político do governo central. E um terço das cadeiras foi preenchido por uma lista obscura de representantes dos setores sociais e categorias profissionais. Além disso, a convocação da Constituinte não foi aprovada em referendo, como prevê a lei. A oposição boicotou a eleição e um boletim de apuração obtido pela agência Reuters indica que apenas 3,7 milhões dos 19 milhões de eleitores haviam votado até 17h30, uma hora e meia antes do fechamento das urnas.
Diante de tudo isso, boa parte da comunidade internacional, incluindo o Brasil e demais membros do Mercosul, os EUA e a União Europeia não reconheceram a Constituinte.
Com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, que apoiava incondicionalmente o regime chavista, o governo brasileiro assumiu um papel de liderança no Mercosul na rejeição à ruptura da ordem democrática na Venezuela. O país acabou suspenso do bloco. Mas a situação interna do Brasil acabou – como era inevitável – abalando a sua capacidade de articulação internacional.
A viagem do vice-presidente americano, Mike Pence, à América do Sul, colocou isso em evidência. Pence veio à Colômbia, à Argentina e ao Chile. Não ao Brasil, por uma razão óbvia: uma viagem dessa é preparada com antecedência, e não pode incluir um país cujo presidente não se sabe ao certo quem será.
É tristemente irônico. Durante a campanha presidencial americana e depois da eleição de Donald Trump, muito se discutiu sobre que grau de importância o futuro presidente daria à América do Sul, em geral, e ao Brasil, em particular.
Não havia sinal algum de que o subcontinente americano habitasse os planos desse excêntrico líder. Entretanto, Trump surpreendeu mais uma vez e enviou o seu vice à região. A Venezuela foi colocada no topo das conversas entre Pence e os presidentes dos três países, não só em razão de sua dramática situação, mas pela declaração que Trump fizera, às vésperas da viagem, sobre uma possível intervenção militar. Pence ouviu a mesma resposta dos três presidentes: “Nem pensar”.
Naturalmente, outros temas, de comércio, investimentos, cooperação militar etc., foram discutidos. O Brasil ficou fora da conversa. Mais um preço pago pelo comportamento inaceitável de seus políticos.
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