Coronavírus testa o “sistema da China”

O presidente Xi Jinping declarou que o surto de coronavírus representa um “teste para o sistema da China”. É verdade. A epidemia lança nova luz sobre um debate fundamental, do qual a China é o grande laboratório: é possível um país avançado sem democracia?

Como já escrevi aqui, a China obrigou a uma revisão dos manuais de economia e de ciência política. Sua combinação de regime autoritário e desenvolvimento econômico desafia a tese segundo a qual a democracia liberal é uma condição de possibilidade do capitalismo avançado.

A novidade no experimento chinês está no uso do algoritmo. Os chineses resolvem virtualmente tudo com seus celulares. Ao fazerem isso, permitem ao regime e às empresas controlar todos os aspectos de sua vida. A inteligência artificial levaria potencialmente a uma relação “perfeita” entre oferta e demanda, e ao fim dos ciclos que atormentam o capitalismo e a democracia. 

A capacidade de inovação das empresas chinesas em inúmeros segmentos parece desmentir também a noção segundo a qual o ambiente de liberdade seria uma condição para criações “disruptivas”. A China hoje tem não um, mas 17 “Vales do Silício”.

Entra o coronavírus em cena. A gestão do surto teve um início desastroso, quando estava a cargo das autoridades da cidade de Wuhan e da província de Hubei. Os dirigentes do Partido Comunista nessas duas circunscrições foram demitidos na semana passada. 

Xi Jinping conversa com moradores durante inspeção das medidas contra o vírus em Pequim
Foto: JU PENG / XINHUA / AFP

Se a decisão foi mais movida pelas suas ações de encobrimento do surto ou pela sua incapacidade de contê-lo não está claro. O motivo mais provável, conhecendo o regime chinês, é o segundo.

Mas, pela natureza mesma da gestão da saúde pública, as duas coisas estão interligadas –– e até o regime chinês já parece ter percebido isso, depois de o encobrimento haver prejudicado a contenção da epidemia de Sars em 2003. A informação –– dentro da rede e para o público –– é a principal arma das autoridades de saúde na guerra contra uma epidemia.

A atitude da polícia de Wuhan, de repreender o médico Li Wenlian por ter avisado seus colegas sobre o surgimento da doença, lembra o período do Grande Salto para Adiante (1958-60), quando milhões de pessoas morreram de fome porque autoridades locais enviaram para o governo central dados superestimados da safra agrícola, com receio de serem punidas.

Esse padrão nunca mudou entre os dirigentes locais, por mais que as autoridades centrais exijam informações fidedignas –– ao menos no interior do governo, se não na forma de transparência pública. O atual surto de coronavírus parece ser uma trágica prova disso. 

Mesmo o governo central tem enviado sinais contraditórios quanto ao seu desejo de transparência. O presidente Xi advertiu altos funcionários do governo de que as medidas para conter a epidemia tinham sido severas demais, e estavam ameaçando o crescimento econômico do país, segundo a agência Reuters.

A capacidade do governo de entregar prosperidade crescente à população é vista pelo regime como essencial para o seu apoio popular e a sua sustentabilidade política. Mesmo não passando pelo crivo das urnas, o regime se preocupa com o humor da colossal população chinesa. A enorme indignação popular com o manejo da informação, simbolizado pela morte do médico Li, vítima do coronavírus, torna essa equação mais crítica.

Mesmo medidas na direção de maior transparência acabam aumentando a suspeição. As autoridades passaram a incluir nas estatísticas de contágios os diagnósticos clínicos, e não apenas os exames laboratoriais positivos. Isso levou na quinta-feira ao aumento de 44% no número de casos confirmados em Hubei (de 33.366 para 48.206). 

A credibilidade é um edifício que se constrói com esforço cotidiano alicerçado na transparência. A ausência desse alicerce é uma grande fratura no “sistema da China”.

Publicado no Estadão. Copyright: O Estado de S. Paulo. Todos os direitos reservados.

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*