O fortalecimento do populismo, a ascensão da China e as manifestações na França reforçam a necessidade de uma discussão honesta a respeito da democracia. Os manuais de ciência política precisam ser reescritos, nos capítulos dedicados à relação entre democracia, capitalismo e inovação. Há uma crise de legitimidade da política, que não irá embora com artifícios de marketing.
Participei nos últimos dias em Marrakech dos Atlantic Dialogues, uma conferência sobre geopolítica e desenvolvimento global, que frequento todos os anos desde a segunda edição, em 2013. China e um “novo contrato social” foram os principais temas. Não há respostas definitivas, mas alguns pontos de partida estão claros.
Começando pela China. O postulado segundo o qual a força inovadora do capitalismo está associada à liberdade de pensamento não é mais válido. Esse postulado foi elaborado antes do uso do algoritmo como ferramenta de captação e distribuição da informação nas plataformas digitais. Os chineses estão criando um sistema de controle dos movimentos, hábitos, opiniões e consumo de sua população, que permite ao Estado destilar a inovação voltada para a indústria e os serviços daquela vinculada às aspirações culturais e políticas.
Isso tem sido possível na China por uma razão cultural: a maioria dos chineses não prioriza a liberdade política nem a privacidade pessoal. A discussão sobre ceder nessas duas esferas de direitos nem existe, porque eles nunca usufruíram nem de uma nem de outra. O que lhes importa é a melhora nas suas condições de vida materiais, que eles vêm experimentando.
Estive duas vezes na China este ano. Cansados de se sentirem inferiores, por viverem sob uma ditadura de partido único, os intelectuais chineses se regozijam com a estabilidade e a prosperidade que seu regime tem proporcionado ao seu povo, em contraste com a polarização política e as frustrações expressas pelos ocidentais, no campo sócio-econômico.
O presidente Emmanuel Macron experimentou nas últimas semanas o quanto a massa de descontentes é insaciável. Em dois recuos sucessivos, ele retirou o aumento do imposto sobre o diesel e anunciou um pacote de 10 bilhões de euros em iniciativas sociais. Ainda que o movimento possa refluir, não há iniciativa do governo capaz de eliminar essa onda de rejeição. E a razão é simples: o pano de fundo dos protestos é o não-reconhecimento da legitimidade de um governo eleito democraticamente.
Não há uma pauta a ser negociada, não há concessões que superem o conflito. Porque a sua essência é um sentimento difuso de exclusão. O mesmo se aplica ao Brexit. No plebiscito de 2016, os britânicos votaram, por pequena margem, em favor de algo impossível: que o Reino Unido deixe de arcar com as responsabilidades de pertencer à União Europeia sem abrir mão dos benefícios econômicos dessa integração.
No processo de negociação do Brexit, ficou claro para a maioria dos britânicos o que os especialistas já sabiam: a saída, se levada a cabo integralmente, representaria um desastre para a economia britânica, hoje totalmente dependente dos acordos firmados ao longo de décadas com os parceiros europeus. E uma saída pela metade — a única economicamente sustentável — resulta numa situação pior que a atual, porque implica em continuar obedecendo aos ditames de Bruxelas sem participar das decisões. Ou seja, em vez de recuperar soberania, os britânicos vão perder.
Na Alemanha, as baixas sofridas pela União Democrata Cristã, de centro-direita, e pelo Partido Social Democrata, de centro-esquerda, são a clara expressão desse descontentamento localizado. Mais ainda do que a França e o Reino Unido, a Alemanha se beneficiou enormemente da integração econômica das últimas décadas, emergindo como o maior exportador, em valor agregado, e como líder da zona do euro, ditando as regras do segundo maior sistema monetário do mundo.
Mas a vida piorou para uma parte dos alemães, franceses e ingleses. Outra parte, os mais jovens, não encontra um lugar para si. Há um conjunto enorme de valores, que compõem as prioridades de setores expressivos da população, na Europa e nas Américas, que não é contemplado pelas políticas convencionais dos governos desses países.
Há uma exigência de coerência por parte dos mais jovens e de bem-estar dos mais velhos, da qual os governos, principais partidos, grandes empresas, lideranças religiosas e a mídia estão muito aquém.
Nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil, a indignação com essa distância entre as prioridades dos dirigentes políticos e de parte da população levou à ascensão do populismo. Líderes que compreenderam essa ira com a política tradicional, como Donald Trump, Luigi di Maio e Matteo Salvini (Itália), Viktor Orban (Hungria), Lula e agora Jair Bolsonaro, estão se aproveitando dela, mas dificilmente trarão respostas sustentáveis no tempo.
É preciso pensar num novo contrato social, no qual as pessoas sintam que realmente participam das tomadas de decisão. As plataformas digitais permitem uma forma mais direta de democracia. Talvez no futuro próximo compreendamos que precisamos menos de líderes e mais de gestores, que trabalhem sob o escrutínio direto dos cidadãos. Enquanto esse novo sistema é gestado, é preciso cuidar para que a polarização não aumente e o tecido social não esgarce mais ainda. Lucidez e paciência são essenciais, para quem não quer ser arrastado para os extremos da polarização.
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