Diplomacia em campo minado

Na segunda-feira, o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, enviou uma carta a seu colega da Rússia, Vladimir Putin, em que se desculpou pela derrubada de um caça russo em novembro, expressou suas “profundas condolências” à família do piloto morto e disse que faria tudo o que fosse necessário para restaurar as relações entre os dois países. No dia seguinte, o Estado Islâmico realizou seu sexto atentado em um ano na Turquia, deixando 44 mortos e mais de 239 feridos. Dessa vez, segundo autoridades turcas, orquestrado pelo checheno Akhmed Chatayev, o terrorista mais procurado pela Rússia, e realizado por três homens provenientes da esfera de influência de Moscou: a república russa do Daguestão e as antigas repúblicas soviéticas do Usbequistão e do Quirguistão.

A nacionalidade dos envolvidos deu significado extraordinário à retomada da cooperação com a Rússia, que pode fornecer valioso material de inteligência à Turquia na caçada aos autores, e selou a união dos dois países frente ao inimigo comum. Putin ligou para Erdogan um dia depois do atentado, e ambos falaram em colaborar no combate ao terrorismo e nos problemas de segurança regionais. Leia-se Síria.

O que levou à ruptura entre os dois foi o fato de Putin apoiar o regime de Bashar Assad e Erdogan exigir a sua saída, permitir o trânsito dos rebeldes seculares e islâmicos da Turquia para a Síria e até fazer vista grossa para o fornecimento de armas para eles.

Em retrospecto, o timing da carta de Erdogan lhe dá um caráter premonitório. O impacto de seu gesto teria sido bem menor se ocorresse depois do atentado de Istambul, porque pareceria oportunismo. Mas uma nova ação do EI – que não costuma assumir seus atentados na Turquia – parecia iminente. O grupo orientou seus seguidores a atacar no atual mês sagrado do Ramadã, e o atentado ocorreu um dia antes do segundo aniversário da proclamação de seu “Califado Islâmico”, em 29 de junho de 2014.

O rompimento com a Rússia golpeou a economia turca no turismo, que representa 5% do PIB. É o mesmo ponto vulnerável que o EI atinge ao atacar o terceiro aeroporto mais movimentado da Europa ou, como fez em janeiro, as proximidades da mesquita Sultanahmet, quando matou dez turistas alemães.

Depois da derrubada do avião, Moscou proibiu a venda de pacotes e vôos charter para a Turquia, destino muito apreciado pelos turistas russos. Essa proibição foi agora levantada, e a gigante da energia Gazprom anunciou a retomada das negociações sobre a construção de um gasoduto para a Europa, passando pela Turquia.

O mais interessante é o impacto que essa reaproximação terá sobre a posição da Turquia em relação à Síria. Na quinta-feira, o chanceler turco, Mevlut Cavusoglu, preparou a opinião pública, anunciando que o país vai buscar uma solução de compromisso com a Rússia a respeito do conflito sírio. “Tenho certeza de que Putin pressionará Erdogan a se reconciliar com Assad, e ele poderá fazer uma virada como a que fez com Israel”, diz o cientista político turco Sahin Alpay. Na mesma segunda-feira, Turquia e Israel reataram relações, rompidas desde 2010, por causa do incidente com a flotilha liderada por um navio turco que tentou levar ajuda aos palestinos na Faixa de Gaza, furando o bloqueio imposto por Israel. Comandos israelenses abordaram o navio e mataram 11 cidadãos turcos. No dia 7, o primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, havia visitado Putin, e o presidente russo lhe dissera que um reatamento entre Israel e Turquia estava próximo. Israel também pode fornecer gás para a Turquia, embora tenha de passar pelo Chipre, cujo governo não é reconhecido pelos turcos. Mas esse reconhecimento é condição para o ingresso da Turquia na União Europeia, que também está em negociação.

Segundo Alpay, a imprensa turca noticiou que Erdogan estaria negociando secretamente com Assad, e também com o Egito, outro país com o qual havia rompido, em defesa da Irmandade Muçulmana, cujo governo foi derrubado pelos militares em 2013. Erdogan parece estar passando por um processo de “desislamização”.

Os aliados da Turquia na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) defendem a saída de Assad como parte da solução para o conflito na Síria. Erdogan era muito próximo de Assad antes do início das manifestações pró-democracia no país vizinho. Ele vislumbrou na Primavera Árabe a oportunidade de se elevar como líder do mundo árabe-muçulmano. A onda de atentados do EI atraiu a solidariedade dos governantes dos Estados Unidos e da Europa. Uma reaproximação com Assad – que afinal também enfrenta o EI e outros grupos radicais islâmicos – poderia transformar Erdogan no intermediário com as credenciais necessárias para uma solução do conflito sírio. Lições de sobrevivência em um campo minado.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*