Pobres se afastam em meio à dificuldade do governo de manter seus benefícios
Estamos descendo dos morros. A frase, de um rapaz da “Resistência”, resume a transformação por que passa a Venezuela. Ele e outros jovens moradores da favela de Santa Cruz, mascarados, armados de pedras, coquetéis molotov e bastões de beisebol, com capacetes e armaduras improvisados, defendem a linha de frente das barricadas nas avenidas do bairro de classe média no pé dos morros.
Moradores do bairro, profissionais liberais e empresários de meia idade, ficam na retaguarda, mas também ocupam as ruas, já não correm quando os “coletivos” chavistas chegam com suas motocicletas e abrem fogo, e dão o dinheiro necessário para a gasolina e a comida dos manifestantes.
Juan Guerrero, presidente da associação de moradores da urbanização Terrazas del Club Hípico, antropólogo de formação, reconhece que historicamente os moradores das favelas e dos bairros nobres viveram em mundos à parte, mas agora estão se unindo pelo sofrimento imposto pelo regime.
Não que já não haja nenhum apoio ao chavismo entre os pobres. Ele continua existindo, mas está a cada dia mais atrelado aos empregos e benefícios concedidos pelo governo. A extrema dificuldade de acesso a alimentos e a outros produtos básicos aumenta a dependência dos mais pobres das versões venezuelanas do Bolsa Família: o cartão mulher, que paga 100 mil bolívares (US$ 12) por mês, e a cesta de tíquetes, de 153 mil (US$ 19). O salário mínimo de 97 mil bolívares completa o orçamento de muitos funcionários públicos sem instrução e aposentados.
Os benefícios têm impacto na medida em que o governo consegue distribuir as cestas básicas vendidas por 100 mil bolívares. No entanto, elas têm escasseado, à medida que se esvai a moeda forte. Com o desmantelamento do parque produtivo pelas políticas chavistas, quase tudo na Venezuela é importado hoje, com exceção da gasolina que abastece tanto as motos dos coletivos quanto os coquetéis molotov dos manifestantes.
Mesmo quando as cestas básicas chegam, elas não atendem, nem em variedade nem em qualidade, às necessidades de uma família. Exatamente como acontece há muitos anos com os cubanos, cujas cadernetas permitem compras muito limitadas nos armazéns estatais, os venezuelanos se deparam com os altos preços dos produtos importados no comércio. E as remarcações de preços são diárias, como no Brasil dos anos 80.
Essa realidade vem causando uma erosão no apoio popular ao chavismo. O governo está tão consciente disso que, depois da derrota na eleição para a Assembleia Nacional de dezembro de 2015, nunca mais permitiu eleições nos moldes de uma pessoa, um voto, atropelando o calendário das eleições estaduais e municipais e o direito ao referendo revogatório do mandato presidencial.
Manobra. A votação de hoje para a Assembleia Constituinte foi desenhada para garantir a vitória chavista. Cada município elege um deputado, independentemente de sua população, para favorecer os menores, que em geral são mais chavistas. As capitais elegem mais dois, o que não compensa o desequilíbrio. Até porque um terço das cadeiras será preenchido por representantes de categorias profissionais e setores sociais, distribuídos também de forma a privilegiar as bases de apoio chavistas.
Se essa eleição é um reconhecimento indireto da falta de apoio popular ao chavismo, ela não é uma rendição. Mas dificilmente será capaz de esconder a sangria. Ao contrário, ela a explicita. Como diz Pablo Antillano, professor de comunicação e política da Universidade Central da Venezuela, é um processo “pornográfico”, pela forma nua e explícita como rompe com a democracia.
A Constituição que resultará dela neutralizará os poderes “dissidentes” – a Assembleia Nacional, os governadores, prefeitos e o Ministério Público – e deslocará suas prerrogativas para os conselhos comunais e o Tribunal Supremo de Justiça, controlados pelos chavistas.
Mas se há uma lição em O Príncipe, de Maquiavel, é a de que um governo sem a adesão do povo não é sustentável. Assim como uma economia ancorada no Estado, por mais petróleo de que ele disponha. O Estado não produz riquezas – ao contrário, ela as suga. Quem produz são as pessoas e as empresas.
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