As relações Brasil-–Argentina passaram por um teste de estresse essa semana, com o giro do novo presidente Alberto Fernández pela Europa. Como eu havia comentado no domingo passado, o Brasil receava que Fernández lançasse com o presidente francês, Emmanuel Macron, uma renegociação do acordo de princípios Mercosul––União Europeia (UE).
Pelo menos publicamente, o assunto não foi tocado, nem com Macron nem com os outros governantes com quem Fernández se reuniu na Itália, Alemanha e Espanha. O Itamaraty também não tem informação de que o tema tenha sido abordado a portas fechadas. Isso produz alívio em Brasília. Uma fonte do governo havia me dito que haveria problemas com a Argentina se Fernández fizesse isso.
O presidente argentino focou suas conversas no pedido de apoio aos governos europeus para a rolagem da dívida externa da Argentina com o FMI. E recebeu declarações contundentes nesse sentido não só de Macron, mas também da chanceler alemã, Angela Merkel.
Ao brindar com Macron durante jantar no Palácio do Eliseu, Fernández confessou: “Eu lia a imprensa, os despachos internacionais, e pensava que Macron respondia a uma ideologia, a um modelo. Eu me enganei. Nós dois pensamos igual”.
Antes de ingressar no setor público, Macron foi um alto executivo do banco Rothschild. Como ministro das Finanças e agora como presidente, ele vem procurando implementar reformas trabalhistas e previdenciárias liberais, que frequentemente provocam greves e manifestações.
Não foi Macron que mudou. Será que não seria Fernández quem estaria passando por uma transformação, pautada pelos dados de realidade e pelo fracasso econômico dos governos de Néstor e Cristina Kirchner, dos quais ele participou, como chefe de gabinete, tendo agora a ex-presidente como sua vice?
Como comentei no domingo anterior, Fernández aprovou no Congresso em dezembro um pacote fiscal que demonstrou preocupação com o equilíbrio das contas públicas. O simples fato de a rolagem da dívida ter dominado suas conversas na Europa demostra também que ele não tem intenção de declarar um calote puro e simples, como temia o mercado.
A Argentina está, na prática, em situação de default, mas é por absoluta falta de dólares, não exatamente porque Fernández despreze a importância de dar uma satisfação aos credores, apesar de em seu primeiro discurso como presidente, em 10 de dezembro, ter declarado que primeiro faria a economia crescer para depois pagar a dívida.
Até aí, só boas notícias para o Brasil. Ver o principal sócio do Mercosul transformado em pária financeiro internacional não nos ajudaria em nada. Mas um segundo aspecto da química Macron—Fernández tem um teor mais picante para o Brasil.
Na declaração conjunta dos dois presidentes depois do encontro, Fernández festejou: “A Argentina pode ser a porta de entrada da França na região”. O jornalista Román Lejtman, que cobriu a visita para o site de notícias argentino Infobae, analisou: “O cálculo geopolítico de Macron é fácil de explicar. Não suporta Jair Bolsonaro, está irritado com Trump por sua posição sobre o Acordo de Mudança Climática de Paris e buscava um aliado estratégico na América Latina.”
De fato, as relações entre Bolsonaro e Macron já arrancaram ruins, por causa de posições políticas divergentes, sobretudo no que se refere ao meio ambiente. Viraram animosidade pessoal, quando o presidente brasileiro endossou um comentário de um usuário do Facebook sugerindo que Macron tinha inveja de Bolsonaro porque a primeira-dama brasileira seria, na visão desse usuário, mais atraente que a francesa.
Quem sabe Fernández não pode representar uma ponte entre Macron e Bolsonaro? Os chanceleres do Brasil e da Argentina, Ernesto Araújo e Felipe Solá, reúnem-se pela primeira vez em Brasília no dia 12. Será uma oportunidade para medir a dose de pragmatismo na Casa Rosada. E no Palácio do Planalto.
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