Hillary, Trump e armas

A polêmica na qual Donald Trump se meteu esta semana oferece um insight sobre os verdadeiros dilemas que dividem o povo americano. Em um comício em Wilmington, na Carolina do Norte, na terça-feira, o candidato republicano disse, referindo-se a sua adversária democrata: “Se ela conseguir escolher os juízes dela, não há nada a fazer, pessoal. Apesar de que as pessoas da Segunda Emenda – talvez haja, eu não sei”. Trump se referia à grande probabilidade de, se eleita em novembro, Hillary Clinton nomear ministros para a Suprema Corte favoráveis a um maior controle da posse de armas.

Donald Trump acena para eleitores durante comício na Carolina do Norte | Sara D. Davis/ Getty Images/ AFP

A Segunda Emenda da Constituição dos EUA diz: “Uma milícia bem regulada, sendo necessária para a segurança de um Estado livre, o direito do povo de possuir e usar armas, não será infringido”. Os críticos de Trump viram na frase dele uma incitação à violência por parte dos defensores do direito à posse de armas. Segundo pesquisa Gallup de outubro, 41% dos americanos possuem armas em casa, 55% desejam leis mais restritivas à venda, 33% aprovam as leis atuais e 11% pedem leis menos rígidas. Trump amenizou mais tarde o sentido de suas palavras, afirmando que se referia à capacidade de mobilização dos defensores da posse de armas.

No entanto, o interessante dessa discussão é o que ela revela sobre a visão de democratas e republicanos acerca do papel do Estado. Em seu livro A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo, de 1904, o sociólogo alemão Max Weber explica como a Reforma promovida por Martinho Lutero deslocou a crença na salvação da Igreja para o indivíduo.

Se os católicos recorrem aos sacramentos e à intermediação dos padres para conquistar o paraíso, os protestantes buscam um diálogo direto com Deus, que julga a autenticidade de sua fé e manifesta a sua bênção por meio da prosperidade material do indivíduo, como um sinal de sua salvação. O maior grau de desenvolvimento do capitalismo nos países de maioria protestante do que nos de maioria católica pareceu confirmar a tese, ao longo do último século.

Numa comparação entre os EUA protestantes e o Brasil católico, fica evidente o quanto os brasileiros esperam mais do Estado e os americanos confiam mais na atuação individual, na solução de seus problemas.

Em consequência disso, o que nos EUA é considerado uma visão de centro, no Brasil é tachado de direita; o que é esquerda para os americanos, é centro para os brasileiros; enquanto que as visões de direita dos EUA são desqualificadas como extremistas, no Brasil. Um dos debates nos EUA que mais assombram os brasileiros – e, nesse caso, os europeus, também – é se deve haver um sistema público de saúde. Outro é se as pessoas devem ou não possuir armas automáticas, de grande poder de fogo, frequentemente usadas em massacres nos EUA.

Nesse ponto, os americanos vão muito mais longe do que sua matriz cultural e religiosa, a Inglaterra. No arquipélago britânico, beneficiado pelo isolamento geográfico, que dificulta a entrada ilegal de armas, há uma espécie de pacto silencioso entre criminosos e policiais, pelo qual ambos frequentemente se enfrentam desarmados, reduzindo os danos desses confrontos.

Os policiais britânicos precisam pedir pelo rádio autorização a seus superiores para destrancar a caixa de armas em suas viaturas, a caminho de uma ocorrência, quando informados de que os suspeitos estão armados. Na conquista do Velho Oeste, no entanto, os colonos de origem inglesa e irlandesa se depararam com um mundo hostil, sem a presença do Estado.

A Segunda Emenda data dessa época: 1781. No entanto, o espírito de colono, de desbravador de um território hostil, ainda é muito forte entre os americanos e cultivado nas escolas, que realizam peregrinações, por exemplo, a San Antonio, no Texas, palco da Batalha do Álamo, onde os estudantes relembram o massacre de 100 americanos por 1.500 mexicanos, depois de 13 dias de cerco à capela na qual resistiam.

Essas referências religiosas e históricas cimentam nos americanos a certeza infantil de que o mundo está dividido entre “bons” e “maus”, e os heróis têm o direito de ter armas para se defender dos vilões. É uma percepção que subverte o monopólio da força pelo Estado, pilar da democracia.

Toda cultura é um pacote, com vantagens e desvantagens. Essa mesma mentalidade é a base do pragmatismo e do empreendedorismo americanos. Com recursos naturais comparáveis aos nossos, e no mesmo lapso de tempo, eles construíram a nação mais próspera do planeta, enquanto o Brasil continua imerso no atraso e na injustiça, por causa do poder excessivo do Estado e de seu uso para o desvio das riquezas de todos para as mãos de poucos.

Os democratas tentam enfiar a mão no pacote, retirar o individualismo predatório e manter o ímpeto empreendedor. Os republicanos desconfiam desse rearranjo e preferem manter a identidade americana intacta.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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