O desembarque no sábado retrasado em Caracas de 100 militares russos e 35 toneladas de equipamento inaugurou uma nova fase na crise venezuelana. O presidente Donald Trump dirigiu aos russos um recado furioso: “Saiam da Venezuela”, enquanto recebia na Casa Branca Fabiana Rosales, que foi denunciar as ameaças do regime chavista contra seu marido, Juan Guaidó, proclamado presidente interino pela Assembleia Nacional.
Transportada em dois aviões russos, a missão é encabeçada pelo general Vasily Tonkonshkurov, comandante do Estado-Maior do Exército. De acordo com a chancelaria russa, o envio dos “especialistas” está previsto nos acordos de cooperação militar entre os dois países. Na década passada, a Venezuela comprou US$ 4 bilhões em armas russas, incluindo 50 helicópteros, 24 caça-bombardeiros Sukhoi e baterias de mísseis terra-ar S-300, que nas últimas semanas foram preparadas para rechaçar um eventual ataque.
O envio de equipes militares russas à Venezuela é comum, mas não nesse número. Funcionários americanos acham que o grupo inclui especialistas em segurança cibernética, cuja missão seria prevenir supostos ataques de hackers contra a rede elétrica, que estariam causando os apagões no país.
Essa é a parte mais visível do apoio russo, aquela destinada a chamar o blefe de Trump, a testar sua disposição de se envolver na Venezuela. Além disso, teriam chegado em janeiro cerca de 400 mercenários russos, do grupo paramilitar Wagner, que já atuou na Ucrânia e na Síria. O próprio líder do grupo, Yevgeny Shabayev, fez esse anúncio na época.
O grau de importância da Venezuela para a Rússia pode ser medido pelo envolvimento do dirigente da petroleira Rosneft, Igor Sechin, que é muito próximo do presidente Vladimir Putin. A Rosneft possui dois campos de gás na costa venezuelana e reservas de 20 milhões de toneladas de petróleo.
A Venezuela deve US$ 3,17 bilhões à empresa de economia mista. É o que não foi pago dos US$ 17 bilhões emprestados pela Rússia desde 2006. Acordo firmado em novembro de 2017 rolou o pagamento dessa dívida por dez anos. Se o regime chavista cair, os russos correm o risco de ver esse crédito questionado pelo novo governo.
Em 2008, quando a Rússia invadiu a Geórgia, Sechin foi o enviado de Putin para incentivar governos de esquerda da América Latina a reconhecer as repúblicas separatistas da Ossétia do Sul e da Abcásia. Eu cobri aquela guerra. Foi o primeiro experimento de Putin em sua campanha de recuperação da influência russa sobre as ex-repúblicas soviéticas.
Sechin conseguiu apoio de Daniel Ortega na Nicarágua e de Hugo Chávez na Venezuela. Depois de conceder US$ 2 bilhões em empréstimos para Chávez comprar armamento russo em 2009, Sechin montou um consórcio de cinco empresas russas para explorar o petróleo venezuelano.
Quando Maduro esteve em Moscou, em setembro, reuniu-se com Sechin, que por sua vez visitou Caracas em novembro. Se Sechin está preocupado, então Putin também deve estar.
Mas há interesses globais em jogo, que explicam o timing do desembarque russo. A Ucrânia elege hoje um novo presidente. O candidato favorito, segundo as pesquisas, é o humorista Volodymyr Zelenskiy, que defende negociações com a Rússia. Seus principais concorrentes são o atual presidente, Petro Poroshenko, e a ex-primeira-ministra Yulia Tymoshenko, ambos pró-ocidentais e anti-russos.
Na segunda-feira, Trump recebeu o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu e reconheceu a soberania de Israel sobre as Colinas do Golan, tomadas da Síria em 1967. A Síria é o principal aliado da Rússia no Oriente Médio. No dia seguinte, o presidente libanês, Michel Aoun, também aliado da Síria, visitou Putin em Moscou, e protestou contra a iniciativa de Trump.
O presidente Jair Bolsonaro está em Israel. Melhor ficar de fora dessa briga.
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