Liberalismo versus populismo

“Eu não estaria tão preocupado com a ascensão da China se os valores liberais não estivessem tão fragilizados nos Estados Unidos sob Donald Trump.”

“Eu não estaria tão preocupado com a ascensão da China se os valores liberais não estivessem tão fragilizados nos Estados Unidos sob Donald Trump”, diz especialista japonês
Foto: Dave Kaup / EPA / EFE

Toshihiro Minohara, especialista japonês em geopolítica da Universidade de Kobe, sintetiza assim as implicações da emergência da China como potência global e o papel esperado dos EUA.

Os poderes hegemônicos anteriores, a partir do Império Romano, comungavam a mesma matriz de valores, observou Minohara em debate na Japan House, em São Paulo, na quinta-feira. Já a China representa outros.  

Estive duas vezes na China este ano. Lá cresce a noção de que eles estão vencendo esse debate. Wang Zhengxu, professor de Ciência Política da Universidade Fudan, em Xangai, me disse, em maio: “A noção de que o sistema americano de eleições multipartidárias é sinônimo de democracia está ultrapassada. A democracia é a habilidade de controlar o governo. Só existe um partido na China, mas ele ouve o povo”.

A ascensão, nos EUA e na Europa, de líderes que hostilizam os opositores, a imprensa, as minorias e os imigrantes, oferece a políticos autoritários no mundo em desenvolvimento uma ilusão de superioridade moral. 

Eles se sentem vingados pela polarização e instabilidade produzidas pela democracia, como se confirmassem sua visão de que exercer a autoridade é esmagar o contraditório e a alternância de poder. 

Como líder desse novo “Mundo Pós-Ocidental”, título do novo livro do professor Oliver Stuenkel, da Fundação Getúlio Vargas, que moderou o meu debate com Minohara, a China se descobre dotada de poder brando, em vez de pária internacional.

Desde a 1.ª Guerra Mundial, recorda Minohara, formado na Universidade da Califórnia, os EUA têm servido de anteparo à emergência de potências não liberais. “Se a União Soviética tivesse vencido a guerra fria, o mundo seria muito diferente”, exemplifica.

Entretanto, os EUA têm hoje um presidente não liberal, que capturou o Partido Republicano, subjugando-o a posições contrárias a sua linha tradicional: livre comércio; alianças com a União Europeia, o Canadá, o México, Japão e Coreia do Sul; e contenção da Rússia. 

Minohara reconhece que, por meio da guerra comercial, Trump se contrapõe às pretensões chinesas. Entretanto, ao desencadear disputas comerciais também com os aliados dos EUA, e ao colocar em dúvida os compromissos de sua defesa, ele põe em risco a ordem internacional — que a China deseja mudar.

O especialista japonês disse que o Brasil e a Índia, como grandes democracias emergentes, deveriam se unir ao Japão e a outros países que têm muito a perder com a ruptura da ordem que sustenta os valores liberais e é por eles sustentada. A duas semanas da eleição, porém, os valores liberais nunca estiveram tão ameaçados no Brasil desde sua redemocratização há três décadas.

Na democracia liberal, o Estado assegura os direitos individuais em todas as esferas: econômica, social e moral. Isso não o impede de promover a igualdade de oportunidades. No Brasil, diante do êxito do governo de Fernando Henrique Cardoso, a esquerda, para se tornar competitiva, associou o liberalismo à insensibilidade social, ao egoísmo de uma elite. 

O liberalismo, assim como os efeitos das privatizações e do Plano Real, é o contrário disso. Mas, na falta de uma tradição liberal, e de apetite do PSDB de defender o que conquistara, essa distorção ganhou adesão.

Como resultado, a resposta eleitoralmente competitiva à devastação econômica, institucional e moral do populismo do PT não é o liberalismo, mas o populismo autoritário de Jair Bolsonaro, que ameaça a democracia. Se nada mudar nas próximas semanas, a causa dos valores liberais no mundo não poderá contar tão cedo com o Brasil.

Publicado no Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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