A revista The Economist traz uma entrevista importante com Emmanuel Macron. O presidente francês analisa a vulnerabilidade da Europa –- e dos valores civilizatórios que ela encarna –– e apela para que seus governantes se mobilizem em torno de um projeto estratégico de projeção de poder.
Trata-se de um velho dilema da Europa, acostumada desde a 2.ª Guerra Mundial a confiar sua defesa aos Estados Unidos, e a se concentrar na consolidação da globalização. Mas o diagnóstico e o apelo de Macron ganham nova dramaticidade, com o que se desenrola nos EUA e na própria Europa.
A defesa europeia foi terceirizada para os EUA com a criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), em 1949. Para os americanos, o investimento nesse papel trouxe retornos, em duas fases.
Primeiro, na disputa de poder com a União Soviética. A partir da dissolução em 1991 da “Cortina de Ferro”, cujo equivalente da Otan era o Pacto de Varsóvia, a aliança transatlântica serviu para materializar a nova ordem mundial, com os ex-satélites soviéticos se aglutinando na Otan; e, em grande medida, na União Europeia.
O realinhamento sob a liderança americana foi tão agressivo que feriu o orgulho do urso russo, subitamente despido da proteção que esses satélites lhe proporcionavam, como tampões em relação à Europa. Isso explica a ascensão de Vladimir Putin, que tem sabido explorar o anseio dos russos por proteção e estabilidade.
Concluído esse realinhamento, na virada do milênio, aumentou a inquietude nos EUA em relação ao preço alto de servir de xerife do mundo e de guarda-costas da Europa. Esse custo é muito maior do que as receitas com a venda de armamentos americanos. Afinal, os europeus também fabricam armas, amplamente empregadas na Otan e que disputam mercado de igual para igual com os EUA.
Sucessivos presidentes americanos pressionaram a Europa a investir mais em defesa. Em resposta, os membros da Otan se comprometeram em 2002 a destinar 2% de seus produtos internos brutos ao orçamento militar. Dos 29, apenas Grã-Bretanha, Polônia, Grécia, Estônia, Letônia e Lituânia cumprem a meta, além dos EUA, que empregam 3,4%. A França está próxima. Mas países ricos como Alemanha e Itália gastam pouco mais de 1%.
A “guerra ao terror” desencadeada pelos atentados de 11 de setembro de 2001 deu sobrevida ao engajamento americano. No governo de Barack Obama, começou a refluir. O grande marco foi o descumprimento da ameaça de Obama de intervir na Síria pelo uso de armas químicas, em agosto de 2012.
A recente ordem do presidente Donald Trump de retirada das tropas da Síria culminou esse processo. Diante da preocupação de Macron com a saída de membros do Estado Islâmico dos cativeiros até então mantidos pelos curdos, a resposta de Trump foi emblemática: eles são vizinhos da Europa, não dos EUA.
O fato de presidentes tão diferentes quanto Obama e Trump terem caminhado na mesma direção prova que esse é um movimento mais estrutural do que circunstancial. Os EUA focam na disputa com a China, e não contam com a Europa como aliada, como quando enfrentavam a URSS.
A razão disso é que o embate com os soviéticos era de caráter militar e geopolítico; e a Europa, o mais crítico teatro de uma eventual 3.ª Guerra Mundial. A disputa com a China é de natureza essencialmente econômica e tecnológica.
Nenhuma potência europeia parece inclinada a se aliar aos EUA contra a China. A exceção é a Grã-Bretanha. Daí o entusiasmo de Trump com o Brexit. A saída britânica do bloco europeu é uma oportunidade histórica de reeditar o “relacionamento especial” EUA-Grã Bretanha.
É improvável que o apelo de Macron encontre ressonância num futuro próximo. Quando a Europa despertar, o mundo estará ainda mais à mercê do nativismo antiliberal personificado hoje por Trump, Putin, Boris Johnson e Xi Jinping.
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