‘Nova era’ pode afastar Itamaraty do multilateralismo

Por tudo o que se viu e ouviu até agora, a relação do Brasil com o mundo sob o governo de Jair Bolsonaro será influenciada pelas simpatias e antipatias do novo presidente; pelas convicções culturais e religiosas de seu chanceler, Ernesto Araújo; e pela orientação liberal do superministro da Economia, Paulo Guedes.

Esses três ingredientes vão interagir com as linhas tradicionais de atuação do Itamaraty, pautadas pelo multilateralismo, pelos acordos e leis internacionais e pelo princípio da não-ingerência.

Bolsonaro nutre forte identificação com o presidente americano, Donald Trump, que como ele conquistou o eleitorado atacando as formas tradicionais de fazer política, os consensos em relação aos direitos humanos e a linguagem politicamente correta. Os pontos de convergência com Trump na política externa são numerosos.

Bolsonaro considera, como o presidente americano, a China uma ameaça aos interesses comerciais e à soberania do Brasil. Ainda em março, o então candidato declarou ao Estadão que a China estava “comprando” o Brasil, e que os brasileiros estavam “entregando” aos chineses sua “segurança alimentar”. Bolsonaro voltava de uma viagem a Taiwan, algo que a China considera uma afronta.

O jornal China Daily, porta-voz extra-oficial do governo chinês, advertiu que uma adesão à guerra comercial dos EUA contra a China pode “custar caro” ao Brasil, como mostra esta reportagem de Lu Aiko Otta. Mesmo assim, o Partido Comunista chinês convidou integrantes do PSL de Bolsonaro a visitar a China, que tem US$ 124,5 bilhões investidos no Brasil e é seu maior parceiro comercial (os EUA vêm em segundo lugar).

O novo presidente comunga com outros evangélicos brasileiros e americanos uma identificação com Israel. Seguindo os passos de Trump, prometeu transferir a embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém. A promessa levou o Egito a cancelar uma missão diplomática e comercial do Brasil.

A Câmara de Comércio Árabe-Brasileira advertiu para possíveis prejuízosnas relações com os países árabes, que em conjunto representam o quarto destino das exportações brasileiras, e o segundo em alimentos. O Brasil é o maior produtor mundial de frango halal (abatido segundo os preceitos islâmicos).

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O presidente eleito Jair Bolsonaro recebe a visita do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, em Copacabana.
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Em contrapartida, o gesto foi recebido com entusiasmo pelo primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, que veio para a posse e já declarou que a mudança da embaixada está confirmada. Os dois governos pretendem selar acordos de cooperação econômica e científica. Bolsonaro deve visitar Israel em março.

A Argentina cede para o Chile a posição de vizinho politicamente mais próximo. Bolsonaro deve visitar primeiro o Chile, onde Guedes foi professor durante a ditadura de Augusto Pinochet. O ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, considera que o Brasil tem a aprender com a experiência chilena de previdência privada e abertura comercial. Sebastián Piñera, o presidente chileno, também veio à posse.

Bolsonaro manifestou a intenção de livrar o Brasil das amarrasrepresentadas pela união aduaneira do Mercosul, que impede o país de firmar acordos comerciais bilaterais com outros países. Guedes afirmou que “o Mercosul não será prioridade”.

O Brasil deve aumentar a pressão sobre os governos autoritários de Venezuela, Cuba e Nicarágua, que foram desconvidados para a posse de Bolsonaro. Aqui também há uma convergência com o governo americano. Os três países foram incluídos na “troica da tirania” pelo chefe do Conselho de Segurança Nacional, John Bolton, que visitou Bolsonaro no fim de novembro. Para a posse, Trump enviou o seu secretário de Estado, Mike Pompeo.

Assim como Trump, Bolsonaro tem manifestado posições contrárias aos acordos internacionais sobre imigração e mudança climática.

No dia 10, enquanto o então chanceler brasileiro, Aloysio Nunes Ferreira, assinava o Pacto Global de Migração, o seu sucessor, Ernesto Araújo, tuitava que o Brasil se retiraria do acordo. A visão de Bolsonaro e de Araújo é que cada país deve estabelecer suas políticas de imigração, e não seguir regras internacionais. O presidente afirma que não fechará a fronteira aos venezuelanos.

Bolsonaro também critica o Acordo de Mudança Climática de Paris. Por isso pediu ao governo anterior que retirasse a candidatura do Brasil a sede da reunião da Conferência das Nações Unidas para Mudanças Climáticas neste ano.

Essa posição causou reação do presidente francês, Emmanuel Macron. Ele advertiu que, se confirmada a retirada do Brasil do acordo, não será possível concluir as negociações para um tratado de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, que se arrastam por duas décadas. O argumento é que as empresas europeias ficarão em desvantagem competitiva perante as de países que não adotem medidas para reduzir a emissão de poluentes.

Desde a Rio-92, a comunidade internacional reconhece no Brasil um papel de liderança nas questões climáticas, e países como França e Alemanha se ressentem da nova posição brasileira, como indicado por seus embaixadores neste artigo no Estadão.

Em paralelo às identificações de Bolsonaro e às visões liberais de Guedes, há as convicções do chanceler. Araújo serviu na embaixada do Brasil em Washington e dirigia, desde outubro de 2016, o Departamento de Estados Unidos, Canadá e Assuntos Interamericanos do Itamaraty.

Ele costuma alicerçar suas visões de mundo sobre suas crenças católicas. Em artigos e entrevistas, tem defendido a tese de que a cultura ocidental está sob ataque do que ele chama de “globalismo”, tema que analiso nesta coluna, ou “marxismo cultural”. O novo chanceler defende o controle da imigração como forma de proteger os valores e a homogeneidade das nações, e não acha que a diversidade seja necessariamente salutar.

A partir desse conjunto de visões, pode-se esperar uma política externa bastante diferente das anteriores. Com relação ao alinhamento dos governos petistas com chavistas, castristas e outros governantes de esquerda, o giro obviamente é de 180 graus. Mas mesmo a linha tradicional do Itamaraty em favor do multilateralismo, das leis e acordos internacionais, das decisões da ONU e da Organização Mundial do Comércio (OMC) pode ser enfraquecida, se não abandonada.

O impacto que isso terá sobre as relações com a China, com os principais países europeus, com o mundo árabe e com o Mercosul dependerá do equilíbrio entre pragmatismo e ideologia na nova política externa.

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