Qualquer simplificação na leitura do extremismo islâmico conduz a erros fatais
Quando eu cobria a guerra civil na Líbia, em 2011, deparei com homens barbudos, na casa dos 40 anos de idade, que avançavam contra a barragem de foguetes das forças leais a Muamar Kadafi gritando Allah-u-Akbar (Deus é o maior), enquanto a maioria dos jovens rebeldes fugia dos atordoantes bombardeios.
Esses homens eram veteranos da guerra contra a União Soviética nos anos 80 no Afeganistão, e pertenciam ao Movimento Combatente Islâmico. Boa parte deles se exilara na Inglaterra, fugindo da repressão de Kadafi. O atentado de segunda-feira em Manchester, que abriga uma expressiva comunidade líbia, é um eco daquele momento.
Na sua primeira entrevista na Líbia, e também na primeira em que deram seus verdadeiros nomes, dois comandantes do grupo me disseram que rezavam na mesma mesquita que Osama bin Laden, no fim dos anos 80, em Peshawar (Paquistão). Um deles, Abdullah Mansour al-Zwei, tinha estudado na Arábia Saudita e ido com Bin Laden para o Paquistão. Bin Laden lhes propôs uma aliança, mas os dois grupos seguiram caminhos diferentes. Enquanto a Al-Qaeda abraçou uma pauta internacional, de combate aos Estados Unidos e a seus aliados europeus, o Mokatila (“movimento”, em árabe), como era conhecido, manteve-se focado na resistência contra Kadafi, que o grupo tentou matar quatro vezes, entre 1994 e 1997.
Mesmo assim, o Mokatila estava na lista das Nações Unidas do terrorismo internacional, e era visto, no Ocidente, como franquia da Al-Qaeda na Líbia. Ironicamente, seus combatentes estavam lutando ao lado da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Eles haviam recebido aparelhos celulares, com os quais passavam para o comando rebelde em Benghazi coordenadas de alvos das forças de Kadafi. A informação era repassada para os pilotos franceses e ingleses, por intermédio do centro de comando da Otan, e minutos depois os alvos eram bombardeados.
Zwei disse que voltaria à Inglaterra depois da vitória contra Kadafi. O outro comandante, Abdul-Manem al-Madhouni, foi morto em combate três semanas depois, à frente de um comboio de 200 veículos. Segundo membros de sua brigada, Madhouni abriu a porta do carro e saltou na estrada depois que um tiro de fuzil o atingiu no peito. O comboio parou. Uma granada propelida por foguete explodiu perto dele. “Não esperem, continuem”, gritou. Levantou-se, deu alguns passos e caiu morto.
Seis anos se passaram, e na segunda-feira o jovem Salman Abedi, de 22 anos, nascido em Manchester de família líbia, explodiu-se em um show de música pop, matando 22 pessoas e ferindo 59. Seu pai e um dos irmãos foram presos em Trípoli, por suspeita de envolvimento com o atentado, de ligações com o Estado Islâmico (EI) e de estarem planejando novos ataques. A polícia descobriu uma oficina de montagem de explosivos em dois apartamentos mantidos por Abedi em Manchester. Ele tivera contatos com um recrutador do EI morto no ano passado na Síria e, segundo as autoridades francesas, pode ter ido ao país, embora seu treinamento na montagem de bombas tenha ocorrido na Líbia.
Abedi e seus irmãos representam a geração seguinte, em relação aos integrantes do Mokatila. Embora mantenham fortes vínculos com a Líbia, sua campanha ganhou um escopo transnacional, sob a liderança do EI. O fato de o grupo ter sido capaz de cooptar essa geração de jihadistas líbios é mais uma prova do imenso poder e alcance de sua mensagem. À diferença do que ocorreu com outros radicalizados, os sermões na Mesquita Didsbury, que Abedi frequentava, condenam o terrorismo.
Repare também que o autor do atentado anterior na Inglaterra, que deixou 6 mortos (entre eles o agressor) e 49 feridos no mês passado em Londres, era um inglês sem origem árabe nem muçulmana. Khalid Masood, de 52 anos, converteu-se ao Islã já na fase adulta, e se radicalizou depois de um histórico de crimes e prisão. Esse é um perfil comum entre os autores dos atentados na França e na Bélgica, com a diferença de que todos vinham de família árabe e muçulmana.
Da nova geração pós-Mokatila na Inglaterra até lobos solitários como Masood, o público-alvo do EI é incrivelmente amplo e diverso. É por isso que qualquer simplificação na leitura do extremismo islâmico conduz a erros fatais.
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