Repensar a democracia

Em seu pequeno livro À Paz Perpétua – Um Projeto Filosófico, de 1795, o filósofo alemão Immanuel Kant previu que, uma vez governadas por democracias, as nações europeias convergiriam para a formação de uma confederação, que colocaria fim às guerras. A premissa de Kant era simples: guerras interessam a ditadores; o povo deseja a paz e a prosperidade. E, como todos os povos almejam a mesma coisa, sua tendência natural é a de se unir.

Nas últimas cinco décadas, a Europa pareceu confirmar a profecia de Kant. O que começou com sete países, na Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, em 1951, já no início do pós-guerra, evoluiu para a atual União Europeia (UE), com 28 países (ainda contando com o Reino Unido). E, como previu Kant, não houve mais guerras entre esses países, e a precondição de sua integração foi a consolidação de suas democracias e sua fé no comércio e na livre iniciativa, razão pela qual o fim da ditadura soviética possibilitou o ingresso dos países do Leste Europeu, antes sob seu domínio.

Membros da organização juvenil SPD (Partido Social Democrata, na sigla em inglês) se reúnem em frente ao Portão de Brandemburgo, na Alemanha, para defender o futuro da União Europeia após britânicos votarem pela saída do Reino Unido do bloco | EFE/ Kay Nietfeld

O que Kant não poderia prever é que, dois séculos depois, a democracia causaria uma fratura dentro de si mesma, para não dizer uma implosão. Continua havendo parlamentos e governos nacionais eleitos pelo povo, assim como existe um Parlamento Europeu. Mas, até por razões práticas, diante da imensa dificuldade de atingir consensos sobre tudo entre 28 países – eles próprios internamente divididos sobre tantas questões -, o processo de tomada de decisões sobre um número cada vez maior de questões foi se afunilando e centralizando em Bruxelas. Com o passar dos anos, os cidadãos europeus foram sentindo que decisões que afetam suas vidas são tomadas por burocratas – ou “eurocratas” – de outros países, reunidos em uma cidade distante e sem nenhum contato com suas realidades.

Esse déficit de democracia veio combinado com perdas econômicas resultantes do deslocamento das indústrias e das atividades de mineração para países com mão de obra mais barata e menores custos relativos a regulação ambiental e a tributação; o envelhecimento da população e a ansiedade causada pelos riscos ao financiamento das aposentadorias; o fluxo de imigrantes de dentro e de fora da Europa; o terrorismo islâmico.

Os ingleses e galeses com mais de 60 anos e de menor escolaridade são os mais afetados pelos aspectos econômicos dessas mudanças, e foram os que deram a vitória à saída britânica. Os escoceses e os católicos norte-irlandeses se sentiam conectados à Europa (no segundo caso, em especial à República da Irlanda), e isso atenuava seus sentimentos nacionalistas feridos pela predominância dos ingleses e protestantes no Reino Unido.

Em termos econômicos, dificilmente o recuo nacionalista trará os resultados desejados. Como os conservadores liderados pela primeira-ministra britânica Margaret Thatcher concluíram no final dos anos 70, seu país não seria capaz de gerar prosperidade para seus cidadãos mantendo atividades minerais, industriais e agrícolas subsidiadas e protegidas, por não serem competitivas. Naquele momento, a decisão foi de especializar-se nas atividades em que o Reino Unido era realmente excelente, entre elas os serviços financeiros e segmentos industriais altamente sofisticados, como o farmacêutico e o químico. E o país realmente prosperou, mas uma transformação desse porte não ocorre sem que uma parte da população saia perdendo. O importante é que o conjunto da população saiu ganhando.

De imediato, a saída do Reino Unido já representa um enfraquecimento da UE: ela perde um de seus dois poderes de veto no Conselho de Segurança da ONU (o outro é o da França), uma potência militar e nuclear, um sexto das riquezas produzidas pelo bloco, o país de economia mais aberta ao comércio e um interlocutor preferencial dos Estados Unidos. Além disso, a vitória dos eurocéticos ingleses representa uma faísca para grupos nacionalistas na França, Alemanha, Holanda, Suécia, Dinamarca, Itália e Grécia, que também exigirão referendos como esse. Uma Europa unida e forte tem potencialmente um papel importante na solução de conflitos no Oriente Médio e na África, e serve de contrapeso ao poder da Rússia, da China e dos próprios Estados Unidos. Tudo isso está agora ameaçado.

Esse não é um fenômeno só europeu: na outra democracia mais madura do mundo, os EUA, que afinal são uma confederação de Estados, também há uma reação contra o processo de tomada de decisão centralizado em Washington, a desindustrialização, mudanças demográficas e a imigração. Donald Trump canaliza essas frustrações. O que isso significa é que a democracia precisa ser repensada. A história está repleta de casos em que a busca de mais poder para o povo resvalou na tirania.

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