Catalães e espanhóis usam os mesmos argumentos para acusar uns aos outros
No domingo passado, falei de como profissionais africanos e europeus estão trabalhando com a falta do sentimento de “pertencer a um lugar” que tem levado jovens a se alistarem em grupos terroristas. Do Marrocos, vim para a Catalunha, cobrir as eleições regionais, que equivaleram a um novo plebiscito sobre a independência da região em relação à Espanha.
Para perplexidade do restante da Espanha e do mundo, os separatistas venceram essas eleições convocadas pelo governo central espanhol depois de destituir o Parlamento e o governo regionais, por terem declarado independência, em outubro.
Somados, os três partidos separatistas mantiveram a maioria absoluta, com 70 cadeiras no Parlamento de 135, e o destino da Catalunha permanece incerto, já que o primeiro-ministro Mariano Rajoy se mostra determinado a intervir de novo, se houver nova declaração de independência, como prometem os vencedores.
Encontrei pessoas na faixa dos 50 anos de idade, incluindo profissionais da área de educação, com dificuldade de falar espanhol – ainda que o bloqueio possa ser mais psicológico do que idiomático. Nas gerações anteriores à da suposta lavagem cerebral nas escolas, já existe uma forte identidade.
Tão forte que passa por cima de preferências ideológicas, num mundo de polarização entre esquerda e direita. Em Girona, encontrei eleitores anarquistas do partido de extrema esquerda Candidatura da Unidade Popular (CUP), que nutrem simpatia por Carles Puigdemont, ex-prefeito da cidade e governador destituído da Catalunha, embora ele pertença a um partido de direita, o Juntos pela Catalunha.
Encontrei em Girona separatistas que se queixam de que o governo da Espanha só ajuda os imigrantes estrangeiros, e outros que não se importam de deixar de pertencer à União Europeia porque ela é “fascista”, já que “não faz nada pelos refugiados”.
Ao mesmo tempo, os espanhóis que vivem na Catalunha e querem que ela continue sendo parte da Espanha se sentem discriminados pelos catalães, como estrangeiros. Eles são chamados pejorativamente de “charnegos”, uma palavra que na sua origem significa “cachorros”, e são vistos e retratados nas novelas da TV3, o canal estatal catalão, como malandros e estúpidos.
De ambos os lados, catalães e espanhóis encontram argumentos para demonstrar que são os outros que os exploram, subjugam e desmerecem. Em alguns casos, os argumentos chegam a ser idênticos, apenas com o sinal trocado.
Em 2006, um acordo permitiu a aprovação do chamado “Estatut”, que garantia autonomia na educação e no uso das receitas orçamentárias por parte da “Generalitat”, o governo regional catalão. Entretanto, o Estatut foi “recortado”, como dizem os catalães, por uma decisão do Tribunal Constitucional, atendendo a um pedido do Partido Popular, atualmente no poder, que tem vínculos históricos com a ditadura nacionalista de Francisco Franco (1939-75).
O Estatut é uma referência à qual espanhóis e catalães podem voltar, de tempos melhores (não perfeitos), quando escapavam da armadilha do ressentimento.
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