Trump, sírios e curdos

Em 1989, depois de dez anos de intervenção, a União Soviética bateu em retirada do Afeganistão. A derrota soviética para aqueles grupos de combatentes islâmicos maltrapilhos, chamados mujaheddin, a maioria sem experiência militar anterior, que acudiram do mundo inteiro para aquela “guerra santa” contra o “império ateu”, foi uma desmoralização tão arrasadora que ajudou a selar o fim da URSS, dois anos depois. 

Os Estados Unidos não têm os mesmos problemas sistêmicos. Entretanto, feitas as devidas ressalvas, a retirada dos mil militares americanos restantes na Síria, depois de uma campanha de oito anos contra o regime sírio e os grupos islâmicos, também é um marco no declínio do império americano.

Numa ironia da história, as posições abandonadas pelos EUA foram ocupadas pelos militares russos. Desde os anos 70, dos tempos do alinhamento das ditaduras árabes com o socialismo, que os russos não tinham projeção na região.

Os aliados curdos, que os EUA abandonaram à própria sorte no norte da Síria, são sobreviventes. O governo de Donald Trump surpreendeu países da coalizão militar na Síria ao anunciar que concluiria a retirada (cerca de 1.500 militares americanos já haviam saído em dezembro). Não surpreendeu os curdos, que anunciaram imediatamente uma aliança com o regime de Bashar Assad e sua protetora, a Rússia. E, por extensão, o Irã.

Estive no front com os “peshmergas” (“aqueles que enfrentam a morte”, em curdo), os guerrilheiros curdos no norte do Iraque, quando eles continham o avanço do Estado Islâmico, em 2014, com apoio de bombardeios aéreos americanos. Eles não lutam para ir para o paraíso, embora sejam muçulmanos. Lutam para não desaparecer.

Ao lado dos curdos, na Síria, lutavam árabes sunitas, que, como os mujaheddin no Afeganistão, não tinham experiência militar. Eram jovens sírios que sonhavam derrubar a ditadura de Assad e construir um Estado laico e democrático em seu país.

A decepção com os EUA não começou com Trump. Em agosto de 2012, o então presidente Barack Obama advertiu Assad a não usar armas químicas contra seu povo, chamando isso de “linha vermelha”. Um ano depois, Assad, entendendo o impacto psicológico que a ascensão dos islâmicos na Líbia e no Egito teve sobre os EUA, testou os nervos de Obama, despejando gás sarin sobre os moradores de Ghouta, na periferia de Damasco.

Como Assad previa, nada aconteceu: Obama estava com as mãos atadas, diante do risco de apoiar levantes que conduzissem inimigos dos EUA ao poder. Isso foi em agosto de 2013. Em setembro, Vladimir Putin despachou aviões e, depois, tropas para a Síria, onde a Rússia já tinha uma base naval, no porto de Tartus. 

Os EUA continuaram a treinar e a fornecer armamento, ainda que leve, aos curdos e árabes seculares. Com um custo relativamente baixo em vidas e dinheiro, essa operação levou à derrota do EI. 

O abandono dos curdos no momento em que a Turquia agrupava suas forças militares para, mais uma vez, tentar varrê-los do norte da Síria, é um recado que todos os aliados –- assim como os inimigos —- dos EUA entenderam: os americanos não são confiáveis.

Trump vê o mundo pela lente de um homem de negócios
Foto: Jabin Botsford / Washington Post

Trump vê o mundo pelas lentes de um homem de negócios. Acha que pode substituir, com vantagem, a presença militar por sanções contra a Turquia. Muitos leigos também acham que o interesse econômico se sobrepõe ao militar. Essa é uma visão ingênua e simplista da realidade. Guerras atingem os seres humanos em um nível mais profundo. Dizem respeito a percepções de ameaças existenciais. 

A Rússia ganhou todas as brigas dos últimos anos com os EUA: Crimeia, Síria, Venezuela. Um ator muito mais poderoso se projetará no vazio deixado pelos EUA: a China, potência econômica e militar. É para ela que os países se voltarão, cada vez mais, quando precisarem de aliado confiável.

Publicado no Estadão. Copyright: O Estado de S. Paulo. Todos os direitos reservados.

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