África selvagem transforma safáris em meio de preservação

MBOMBELA, África do Sul – No Brasil, as reservas ecológicas são territórios teoricamente intocáveis, nos quais atividades econômicas são proibidas. Como há gente morando dentro delas e no seu entorno, que precisa sobreviver, e é impossível fiscalizar seus imensos territórios, todo tipo de atividade ocorre, de forma ilegal e predatória. Na África do Sul, no lugar de reservas há 19 parques nacionais, que geram arrecadação para o Estado e empregos para as comunidades locais. Cometem-se crimes ambientais, mas numa dimensão muito menor.

Nos parques nacionais, o governo entrega concessões para empresas privadas operarem hotéis, safáris, restaurantes e lojas, que vendem não só produtos industrializados, mas também peças de artesanato feitas pelas comunidades locais. De acordo com Reynold Thakluli, gerente de mídia e relações institucionais do South African National Parks, órgão do Ministério do Meio Ambiente que administra os parques, menos de 20% dos gastos com a manutenção deles são bancados pelo governo. Mais de 80% provêm das atividades privadas. As províncias também têm os seus parques, que seguem modelo semelhante.

Mas a iniciativa privada não atua só nos parques públicos. Centenas de reservas privadas surgiram a partir dos anos 40 na África do Sul, em geral em áreas contíguas ou próximas aos parques nacionais, aproveitando seus ecossistemas e o fluxo de turistas que eles atraem. Fazendas de gado e de ovelhas deram lugar a ranchos de safári. Muitas se consolidaram em cooperativas, formando unidades maiores, chamadas “conservancies”.

Parte dos fazendeiros mudou de negócio, da agropecuária para o ecoturismo. Parte arrendou suas terras para empresários do setor. Hoje muitos deles já estão na segunda ou terceira geração, de filhos e netos de fazendeiros convertidos para o setor do turismo. E o movimento continua, com muitas fazendas sendo vendidas ou arrendadas para se tornar locais de safári.

Segundo Grant Hine, presidente da Associação de Guias de Campo da África do Sul, o setor emprega 50 mil guias – incluindo os de safári, os de esportes radicais e os de locais turísticos. Desses, entre 85% e 90% trabalham para empresas privadas. Os salários variam de 1 mil rands (US$ 133) a 8 mil rands (US$ 1.066).

Os safáris – e os seus guias – eram tradicionalmente negócio de brancos. O governo tem estimulado a contratação de moradores das áreas em torno das reservas, pagando pelo seu treinamento nas cerca de 100 empresas credenciadas para isso. Como resultado, entre 35% e 40% dos guias formados atualmente pela associação são negros, diz Hine.

Os parques nacionais empregam diretamente 4,5 mil pessoas, além dos estagiários e dos empregos indiretos que geram. Só no Kruger Park, o maior dos parques nacionais (19 mil km²), são 1.885 funcionários permanentes, 202 temporários e 64 estagiários. Esses são os funcionários do governo. Além deles, há os empregados das oito empresas que mantêm hotéis dentro do parque – com seus respectivos serviços de safáris – e das três que operam restaurantes, lojas e áreas de piquenique.

O número de visitantes do parque subiu 7,8% no último ano, de 1,32 milhão para 1,43 milhão. Os hotéis estavam praticamente todos lotados essa semana, nas férias de inverno. Quem passa a noite no parque paga uma “taxa de conservação” de 160 rands (US$ 21,33) ao governo. Os visitantes que vão passar o dia, muitos deles moradores das comunidades locais, não pagam a entrada. Um pouco menor que o Estado de Israel, e com o mesmo formato alongado, o Kruger parece um país. Cada hotel corresponde a uma cidade no seu mapa, que indica os animais mais frequentes nas suas imediações.

O último censo, feito em 2005, mostra um aumento na população de muitas espécies de animais. Os elefantes, por exemplo, subiram de 7.454, em 1980, para 12.470; as girafas, de 4.122 para 6.700; e os rinocerontes brancos, que chegaram perto da extinção no fim do século 19, saltaram de 598 para 6.940. Nos safáris guiados pelas equipes dos hotéis entre 17h30 e 20h30 e entre 5h30 e 8h30, é fácil encontrar famílias de leões nas estradinhas que cruzam o parque. Elefantes, girafas, zebras, rinocerontes, hipopótamos, búfalos e várias espécies de antílopes são vistos facilmente durante o dia.

Isso também acontece nas reservas privadas. Até 2002, havia seis fazendas de gado onde hoje existe a reserva Thanda (“amor”, em zulu). O empresário sueco da área de telefonia Dan Olofsson foi comprando as terras, que hoje somam 14 mil hectares, num investimento de 400 milhões de rands (US$ 53,3 milhões). Hoje, ela tem 14 leões, 15 rinocerontes pretos e 21 brancos, pelo menos 14 leopardos, 16 hienas, 18 elefantes e 130 búfalos. A reserva emprega direta e indiretamente 130 pessoas, mantém projetos sociais que envolvem 200 mil pessoas da comunidade, na província de Kwazulu-Natal (sudeste do país) e recebe cerca de 3 mil visitantes por ano, que pagam uma média de 5 mil rands (US$ 667) por noite. Parte da renda vai para a fundação do rei zulu Goodwill Zwelithini, em cujo território se situa a reserva.

“É um negócio lucrativo, considerando que os donos se hospedam com amigos a cada dois ou três meses”, diz o gerente da reserva, Pierre Dalvaux. “Não há caça, e quando temos animais em excesso, fornecemos para outras reservas.”

Proibida em todos os parques nacionais, a caça é permitida, de forma controlada, em reservas privadas. Apesar de seu aspecto brutal, a caça também tem impulsionado a criação de reservas e a expansão do número de animais. Os preços variam, mas, em média, para caçar um leão pagam-se 500 mil rands (US$ 67 mil); um leopardo, 75 mil rands (US$ 10 mil); um rinoceronte branco, 650 mil rands (US$ 87 mil). Com esses preços, as reservas de caça podem gerar lucros matando poucos animais e criando espaço para muitos.

Richard Sowry, ranger (policial ambiental) no Kruger Park, defende a “caça sustentável” como forma de preservar o meio ambiente. Sowry conta que trabalhava na reserva privada Klaserie. Em todo o ano de 2001, foram caçados na reserva dois leões, dois elefantes e cinco búfalos, gerando receita de 1,2 milhão de rands. Isso deu para sustentar a reserva, que tinha cerca de 100 leões e 400 elefantes, e ainda gerar lucros, garante o ranger – um dos cerca de 300 que patrulham o Kruger.

Sowry diz que uma reserva de safári apenas para fotografar pode degradar o meio ambiente se gerar lixo sem destinação adequada, se não tiver tratamento de esgoto ou causar excessiva aglomeração de veículos. “O importante é que as reservas sejam geridas de forma sustentável, independentemente de serem para caça ou não.”

Harriet Davies-Mostert, diretor científico do Endangered Wildlife Trust (Fundo da Vida Selvagem em Risco), enumera “aspectos positivos da indústria da vida selvagem”: aumento na distribuição e abundância dos grandes herbívoros; recuperação de várias espécies em risco, como bontebok (antílope), zebra da montanha do cabo e rinoceronte branco; redução dos rebanhos e da degradação do solo que eles causam.

Muitos acordos entre reservas, tanto estatais quanto privadas, têm derrubado as cercas que as separam, aumentando a quantidade e a qualidade de vida dos animais – e, com elas, sua atratividade e lucratividade. Assim como as cercas, caem na África do Sul os tabus que impedem o desenvolvimento sustentável.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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