Governo Mandela é o primeiro verdadeiramente representativo, diz vice-presidente sul-africano
LONDRES – A África do Sul deu mais um passo rumo à reconciliação com a comunidade internacional, numa palestra de seu principal líder branco, o ex-presidente e atual vice-presidente Frederik de Klerk no majestoso Royal Albert Hall, de Londres, na noite de sexta-feira. Foi a primeira viagem de De Klerk ao exterior, depois de há uma semana ter entregado o poder ao líder negro Nelson Mandela, cujo Congresso Nacional Africano venceu as primeiras eleições multirraciais da história da África do Sul.
De Klerk, o líder do Partido Nacional – que em 1948 criou o conceito de apartheid, e a partir daí governou a África do Sul até duas semanas atrás – foi aplaudido de pé na entrada e na saída, por mais de 2 mil pessoas dispostas a pagar entre US$ 15 e US$ 30 para ouvi-lo. Entre elas, estava a ex-primeira-ministra Margaret Thatcher, muito elogiada por De Klerk, que defendeu a controvertida tese segundo a qual a oposição da Dama de Ferro ao embargo ínternacional contra a África do Sul, ainda na década de 80, ajudou a acabar com o apartheid.
Alguns ouvintes tentaram refrescar memória de Klerk, lembrando que as sanções, aprovadas pela ONU, tinham como objetivo pressionar o regime sul-africano a abrir mão da segregação racial. De Klerk argumentou que elas tinham efeito contrário, sacrificando os mais pobres, e inspirando os ativistas brancos a seguir em frente com o que consideravam sua “missão divina”.
De Klerk é constantemente comparado a Mikhail Gorbachev, mas, ao contrário do ex-líder soviético, encontrou um lugar ao sol no cenário político de seu revolucionário país. E pareceu à vontade com o novo gabinete de união nacional, chamando os integrantes negros do ” primeiro governo verdadeiramente representativo” da África do Sul de “graduados em Rodden Island”, numa referência à prisão em que ficaram Mandela e outros líderes antiapartheid.
Relembrando sua vertiginosa trajetória política, De Klerk arrancou risos ao falar de sua visita a Moscou, há dois anos. Ao se reunir com o presidente Boris Yeltsin, De Klerk observou que aquele encontro só tinha se tornado possível por causa da destruição tanto do apartheid quanto do comunismo. Quando voltou a seu país, encontrou um comentário no jornal The Citizen, segundo o qual o então presidente sul-africano não tinha entendido bem a história. O encontro com Yeltsin fazia sentido porque a África do Sul caminhava para o comunismo, e a Rússia, para o apartheid.
Mas De Klerk, trazido pelo jornal The Sunday Times, em sua série anual de palestras com ganhadores do Prêmio Nobel da Paz, também veio para falar a sério. O vice-presidente não faz segredo do quanto a África do Sul precisa do apoio e investimentos da comunidade internacional para atravessar a delicada transição rumo à democracia multirracial.
A expectativa sobretudo dos negros é muito alta, depois de séculos de marginalização social. O padrão de vida de um branco sul-africano é em média dez vezes superior ao de um negro. Mandela estabeleceu como prioridade equilibrar essa balança. Mas De Klerk insistiu que seu pais não está passando o chapéu, e, ao contrário dos vizinhos, tem infra-estrutura, recursos e know -how.
Ao julgar pelos aplausos a frases do tipo “a África do Sul é o país mais lindo do mundo”, cerca de um terço da audiência no Albert Hall devia ser sul-africana. O debate que se seguiu à palestra ganhou contornos de uma discussão nacional, talvez uma oportunidade inexistente na própria África do Sul. Sul-africanos brancos, negros e asiáticos tomaram a palavra para colocar grandes questões do passado e do futuro.
Um jovem negro que se apresentou como morador de Soweto, a cidade-dormitório de 2 milhões de habitantes perto de Johannesburgo, quis saber se De Klerk acredita na capacidade dos sul-africanos de esquecer o passado, e mesmo se isso é justo e desejável. O líder branco que conduziu a transição do poder para a maioria negra arrancou aplausos ao responder: “Ninguém pode pedir perdão se não encontrar a capacidade de perdoar no próprio coração.”
Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.