BLOEMFONTEIN, África do Sul – A Copa do Mundo está acontecendo no seu país, a seleção sul-africana joga essa noite, Bloemfontein é cidade-sede, mas Ben e Sanmarie Erasmus vieram ao shopping Mimosa para assistir a um filme bem no horário do jogo contra o Uruguai. Eles saem do cinema, atravessam a praça de alimentação e não olham para os lados, onde as televisões dos restaurantes exibem a partida.
“Prefiro rúgbi”, diz Ben, um fazendeiro de 44 anos, desculpando-se pelo seu inglês, já que seu idioma nativo é o africâner, derivado do holandês dos primeiros colonizadores. Ele não quer sofrer. “Não acho que os Bafana vão ganhar dessa vez.” Com os Springboks, a seleção nacional de rúgbi, a coisa é diferente. “Eles venceram a última partida, contra a França, e já foram três vezes campeões mundiais.”
O resultado da partida vai dando razão a Ben: o Uruguai vence por 3 a 0. Mas essa não é a razão principal da indiferença do casal. O futebol tem sido, historicamente, o esporte dos negros na África do Sul, enquanto os brancos têm o rúgbi, trazido pelos segundos colonizadores, os ingleses (que afinal também criaram o futebol, mas o apartheid sempre encontrou os meios mais artificiais de separar os sul-africanos pela cor da pele).
E o que eles acham de a África do Sul ser sede do torneio mundial de futebol? “No início ficamos com medo, não sabíamos o que esperar, não sabíamos que tipo de gente viria para cá”, relata Sanmarie, de 40 anos, dona de um açougue na pequena Dealeville, a 70 km de Bloemfontein, onde o casal mora. “Mas depois vimos que são pessoas legais. É bom ter diferentes tipos de pessoas juntas.”
O filme que eles acabavam de ver falava exatamente disso: Schuks Tshabalala’s Survival Guide to South Africa 2010, do diretor sul-africano Leon Schuster, um bem-humorado “guia de sobrevivência” para os turistas que vêm à Copa, e na verdade uma ácida exposição das contradições desse país diverso, que ao longo do último século lidou terrivelmente mal com essa diversidade.
Ben e Sanmarie não eram os únicos. Na noite fria de quarta-feira, o shopping, situado no bairro tradicionalmente branco de West Dene, estava repleto de pessoas caminhando indiferentes ao jogo. Michael Halakatevas, de 38 anos, dono do Euro Caffé, um dos bares que estavam exibindo o jogo, tinha uma explicação interessante sobre por que havia menos gente assistindo do que na estreia da África do Sul contra o México, dia 11: “O jogo de hoje foi mais tarde (20h30). Os negros vêm de transporte público e para eles fica mais difícil. O jogo anterior era de tarde (16h).”
Na noite de quarta, havia 29 brancos e 4 negros assistindo a partida. Mas a poucos metros dali o Bar Richelieu tinha a relação inversa: estava lotado de negros e só um casal branco. “Ainda há muita separação”, reconhece Halakatevas, integrante da expressiva comunidade grega de Bloemfontein.
Entre os brancos no Euro Caffé estava o casal Jonathan de Ridder, de 23 anos, e Kimberlee Hughes, de 20. “Sou muito novo no futebol”, disse De Ridder, de 23 anos, que estudou administração e marketing e trabalha numa empresa de energia eólica. “Comecei a acompanhar agora na Copa. A África do Sul é totalmente ligada ao rúgbi.” De Ridder torce para os Sharks de Durban. Kimberlee, estudante de psicologia de 20 anos, também diz que está começando a gostar de futebol. O casal confessa que não entende nada das regras e aproveita para esclarecer dúvidas com o repórter brasileiro: “Como funciona o cartão amarelo? Por que o goleiro tem uniforme diferente?”
Numa mesa separada, três estudantes negros da Universidade Free State, exclusivamente branca na época do apartheid, e agora de maioria negra, assistem à partida. “Nós gostamos de futebol há muito tempo”, dizem os irmãos Mooki, de 22 anos, e Tsireletso Makhetha, de 19, que estudam psicologia e contabilidade, respectivamente. Mooki torce para o Celtics de Bloemfontein; Tsireletso, para o Kaizer Chiefs de Soweto – ambos clubes que nasceram de trabalhos sociais nas cidades-dormitórios. Dibho Seotsanyane, de 20 anos, estudante de recursos humanos e namorada de Mooki, diz que está começando a acompanhar futebol agora na Copa.
“O futebol está unindo muito as pessoas”, observa Mooki. “Eu assisto rúgbi, mas não faz muito tempo.” Ele e o irmão dizem que torcem para os Cheetas de Bloemfontein. “Os brancos e os negros ainda estão muito separados”, reconhece Dibho. “Estão se integrando devagar.” Segundo Mooki, o rúgbi continua bem mais forte que o futebol na universidade. “Acho que depois da Copa do Mundo vai ser diferente.”
Frustrados, muitos torcedores se levantaram e foram embora depois do terceiro gol do Uruguai. Mas, acabado o jogo, seis adolescentes negros passaram festejando. “Não temos de ficar tristes porque os Bafana perderam”, explicou Thuto Ntsiuda, estudante do ensino médio, de 17 anos. “Pelo menos jogamos. Se não fôssemos anfitriões, não teríamos nos classificado para jogar na Copa.” Os cinco rapazes e uma garota garantiram que têm amigos brancos onde moram, no bairro de Hilton Gardens, antes exclusivamente branco, e agora habitado também pela classe emergente negra. “Eles são portugueses”, disse Ntsiuda, referindo-se a outra comunidade expressiva da cidade. “Não vieram porque não tinham os 12 rands (US$ 1,60) da condução.”
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