‘No apartheid, pelo menos tínhamos emprego’

JOHANNESBURG, África do Sul – Na manhã ensolarada de domingo, Bongami Xapa esparrama seu metro e noventa de estatura numa cadeira de metal do Restaurante Suajaya, no bairro negro de Soweto. O som alto do rap abafa as cantigas que os meninos entoam em zulu para os eventuais turistas, por alguns trocados, na frente da antiga casa de Nelson Mandela. “Aqui, para ganhar a vida, você tem que partir para o crime”, resume placidamente Xapa, que, aos 32 anos, nunca teve emprego.

Uma década depois da eliminação oficial do regime de segregação racial, muitos jovens negros acham que sua geração vive em condições piores que as de seus pais, por causa do desemprego, que hoje atinge 30%, segundo cifras oficiais, ou 40%, de acordo com estimativas independentes. “Na época do apartheid, quem procurava emprego encontrava. Mesmo que pagassem mal, dava para viver”, compara Thamsanqa Ndimande, de 25 anos, que ganha a vida como guia turístico e vendendo estatuetas de ébano que ele esculpe e figuras de pedra-sabão do Zimbábue.

“Para nossos pais, foi muito mais fácil”, garante Ayanda Maseti, também de 25 anos. A mãe dela, ex-professora de escola pública, sustenta a casa com aposentadoria equivalente a cerca de US$ 50; a de Ndimande, enfermeira aposentada, também, com US$ 64. “Nós duas temos tentado de todas as formas, mas não conseguimos emprego”, diz a prima de Ayanda, Buhle Ngcoza, de 22 anos. As duas chegaram a ter empregos temporários. Ayanda ganhou US$ 120 como caixa de supermercado; Buhle, US$ 100, numa loja de roupas. Mas por apenas alguns meses. “Não temos formação profissional”, explica Buhle.

Os dois lados da rodovia de 74 quilômetros que liga Johannesburg a Pretória estão cobertos pelas reluzentes fachadas de companhias transnacionais de tecnologia da informação, que se instalaram no país a partir do fim das sanções econômicas impostas pela ONU por causa do apartheid. Mas elas geram poucos empregos, e para quem tem formação. Não é o problema de Ndimande, um dos poucos negros que conseguiram, nos anos 90, fazer o curso de Ciência da Informática na Universidade de Pretória.

“Não encontro uma oportunidade porque não tenho experiência profissional”, conta Ndimande, que concluiu o curso em 1999. “Já meus colegas brancos conseguiram estágios durante o curso, graças aos contatos que tinham, e hoje estão todos empregados”, diz ele. “Para os brancos, é tudo muito mais fácil. A cor da pele ainda conta muito.”

“O desemprego e a mudança no padrão do trabalho não são um problema só na África do Sul, mas um fenômeno mundial”, pondera Carol Allais, chefe do Departamento de Sociologia da Universidade da África do Sul, em Pretória. A particularidade da África do Sul está em que a instituição da democracia multirracial, que tirou o país da condição de pária e o inseriu de volta no mercado internacional, coincidiu com a consolidação da globalização e da nova economia. Com isso, o fim do apartheid, em vez de eliminar, deu nova feição ao sentimento de exclusão dos negros sul-africanos, aos quais esteve reservado um ensino muito inferior ao dos brancos.

“As expectativas eram muito altas, de pessoas que estavam muito oprimidas”, lembra a socióloga. “O governo prometeu empregos, moradia e escolas e as pessoas menos instruídas pensaram que isso viria da noite para o dia.”

“Votamos no CNA (o partido de Mandela e do presidente Thabo Mbeki) esperando que melhorariam nossas vidas”, relata o pedreiro Thami Maqomo, de 35 anos, que mora no bairro pobre de Alexandria, ao norte de Johannesburg. “Mas eles só estão fazendo para eles mesmos. Suas famílias moram em casas grandes e suas crianças freqüentam escolas boas. Nós continuamos no nível mais baixo.”

O governo de maioria negra instituiu uma política de emprego pela qual, no caso de igual qualificação, as contratações devem observar a seguinte ordem de prioridade: mulheres negras, homens negros e mulheres brancas. “Mas, nas áreas que exigem maior qualificação”, diz Carol Allais, “você simplesmente não encontra negros que atendam aos requisitos.”

Nepotismo – “As únicas pessoas que têm acesso a qualquer coisa são as que estão no governo”, diz Xapa. “Fui a uma entrevista de emprego do governo e me perguntaram se tinha alguém na minha família politicamente proeminente”, relata Nidmande. “Só tive um tio que foi morto nos distúrbios de 1976.” Não servia.

“Há muito nepotismo, não no alto escalão, mas nos níveis mais baixos e nos governos provinciais e locais”, confirma Carol Allais. O problema não atinge apenas os negros sem qualificação profissional, mas todos os que dependem de contratos com o setor público.

Mark von Willer é um engenheiro eletricista especializado em cabos de alta tensão. “Não consigo trabalho porque sou branco”, diz von Willer. “Vejo gente bem menos preparada que eu que obtém os contratos.” O engenheiro se prepara para se mudar, com a mulher e a filha de oito anos, para a Nova Zelândia. “O apartheid foi um erro, mas não da minha geração. E agora, nós é que estamos pagando o preço”, lamenta Von Willer. 

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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