Morador de Gao narra sofrimento imposto por radicais islâmicos

Membro da etnia peul alega que tuaregues sempre foram privilegiados

BAMAKO – Boubaka, um comerciante de 47 anos da cidade de Gao, ocupada pelos combatentes islâmicos, chegou a Bamako na noite de domingo, e ainda não se refez de tudo o que passou nos últimos meses. Ele veio trazendo cerca de 50 pessoas, entre sete irmãos, seus filhos e esposas, em um caminhão convertido em ônibus, que comporta cerca de 100 pessoas, apinhadas em bancos de madeira com 6 passageiros cada. Com o conflito, a passagem subiu de 8 mil para 10 mil francos (de R$ 13,50 para R$ 17). A travessia durou quatro dias, numa rota tortuosa que incluiu duas noites no vizinho Níger. No caminho, ele diz que viu meninos de 10, 12 anos, recrutados como soldados dos insurgentes.

“Sempre convivi com os tuaregues, mas até agora não entendi o que eles querem”, diz Boubaka, pertencente à etnia peul, que representa 17% da população do Mali, enquanto os tuaregues, somados aos mouros, de origem bérbere, são outros 10%. “Os tuaregues são privilegiados. Têm empregos públicos sem terem diploma. São oficiais superiores no Exército”, enumera. Como parte de acordos entre o governo do Mali e representantes dos tuaregues, eles têm reservada uma fatia no serviço público, nas Forças Armadas e no gabinete de ministros.

“A verdadeira minoria do Mali são os bobous, que representam entre 2% e 3% da população e trabalham como empregados domésticos”, diz o comerciante. “Se alguém tivesse que fazer rebelião, seriam eles.” Embora isso seja legalmente proibido, no Mali ainda existem escravos –famílias que nascem para servir a outras famílias, e fazem trabalhos domésticos em troca de comida e assistência.

Boubaka, que não quis dar seu sobrenome nem ser fotografado, por medo de represálias contra seus parentes que continuam em Gao, conta que sua casa e sua loja foram saqueadas. Ele lembra que os separatistas tuaregues do Movimento Nacional de Libertação do Azawad (MNLA) chegaram à cidade junto com os militantes do Movimento pela Unidade e Jihad na África Ocidental (Mujao), no dia 29 de março. “Eles ficaram juntos até maio. Em junho, o MNLA partiu.” Os dois grupos entraram em confronto porque o MNLA tem uma agenda secular, de independência do território do norte, enquanto o Mujao e o Ansar Dine querem a conversão de todo o Mali em uma república islâmica.

O Mujao pôs esse projeto em prática em Gao. “As mulheres que saem sem véu são chicoteadas em praça pública”, testemunha Boubaka. “Os homens que são pegos fumando também apanham.” Música e festa foram proibidas na cidade. “Os tuaregues não gostaram disso. Eles são festeiros”, diverte-se Boubaka. Os militantes também obrigaram os moradores a arrancar as antenas de TV dos telhados das casas, conta ele.

Boubaka observou que entre os militantes havia malienses de várias etnias, árabes de Gao e de Timbuctu (outra cidade ocupada no norte), tunisianos, marroquinos, egípcios, saarauis (etnia do deserto) e até três franceses convertidos ao Islã.

“Se os os islâmicos forem embora de Gao amanhã, voltaremos imediatamente para lá”, garante Boubaka, que alugou três casas para sua família e as de seus sete irmãos na periferia sul de Bamako, ao preço de 150 mil francos (R$ 643) cada uma.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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