As artimanhas de Havana

HAVANA: em um mundo que está tudo tão padronizado, tão previsível, Cuba é realmente fascinante/ Carl Court/ Getty Images

Lourival Sant’Anna, de Havana

Há décadas que viajantes do Brasil e de todas as partes do mundo decidem “ir a Cuba antes que acabe”, no sentido de que o fim do regime comunista, que tantas vezes pareceu quase iminente, a transformaria numa ilha caribenha como as outras. Mas o regime tem resistido a todos os tornados e furacões — literais e principalmente figurados — que se abateram sobre a ilha: a crise dos mísseis, o fim da União Soviética, a falência da Venezuela… e a morte de Fidel Castro? Tudo indica que sim.

Atenção, porém: no sentido mais sutil que interessa aos visitantes, Cuba está “acabando”, ou seja, mudando gradual e lentamente, a cada dia. De maneira que é hora, sim, de vir o mais depressa possível.

Afinal, o que torna Cuba um lugar tão singular? Tenho me perguntado isso desde que vim pela primeira vez, em 2003, quando o Estadão me tirou de Bagdá para vir cobrir a prisão de 76 dissidentes. Voltei em 2006, quando Fidel adoeceu e passou o poder ao irmão Raúl; na passagem de 2008 para 2009, no 50.º aniversário da Revolução; e agora, na morte do “comandante en jefe”. E a resposta continua sendo a mesma.

O que torna esta pequena ilha de 11 milhões de habitantes um lugar único no mundo é essa mistura de um povo e de uma ilha caribenha com um passado de sofisticação correspondente à riqueza natural do país e a sua condição de destino turístico dos milionários, antes da Revolução, e a sobreposição a tudo isso de um regime comunista, com um culto à rebeldia de ícones reverenciados mundialmente, como Ernesto Che Guevara, Camilo Cienfuegos e Fidel Castro. Ufa!  Não é fácil sintetizar em uma frase toda a mística concentrada nesta ilha. Seus charutos, seus runs, seus cafés elegantes, seus cabarés — para não falar dos antigos cassinos, proibidos pela Revolução — já seriam incríveis, mas esse tempero romântico de utopia socialista transforma o seu hedonismo em uma experiência transcendente.

Sim, porque em Cuba Libre — e o bon vivant Fidel Castro, com seu charuto, seu uniforme de campanha e sua eterna vida de solteiro é a encarnação máxima disso —, o prazer e o consumo vêm liberados de qualquer culpa. Ao contrário, o prazer aqui tem o tempero da celebração da solidariedade, do altruísmo, do sentimento de estar do lado “certo” da História. É como se ela, desmentindo Francis Fukuyama, se negasse a chegar ao fim, aqui.

Claro que, se você é daqueles viajantes “chatos”, que insistem em conhecer a realidade, muitos mitos cairão por terra. A educação, contaminada pelo doutrinamento, congelada no tempo, pela falta de recursos, e com a exportação dos professores mais experientes para Venezuela e Bolívia, no esforço do governo de captar divisas, há muito que não é tudo isso. A saúde, também, com a saída em massa dos médicos para 62 países com os quais o governo cubano firmou convênios, incluindo os 11.300 profissionais que foram parar no Brasil, segundo maior destino, depois da Venezuela.

Nas vezes anteriores que vim a Cuba, era perturbador o assédio aos turistas, dos moradores de Havana em seu desespero pela sobrevivência, oferecendo charutos e garrafas de rum roubados das fábricas estatais, enquanto as mulheres vendiam seu corpo. Isso ainda existe, mas numa escala muito menor, que realmente não compromete os passeios pela Havana Velha. O alívio é produto das reformas econômicas lançadas por Raúl em 2011 — a contragosto de Fidel, que temia o surgimento de classes sociais em Cuba.

Os cubanos podem agora legalmente ter seus pequenos negócios, e chegar até o fim do mês com mais dignidade. E isso representa um grande ganho para os visitantes. Como parte dessas reformas, disseminaram-se as casas de famílias que podem legalmente abrigar turistas — ao estilo Airbnb, que aliás já serve de plataforma para reservar essas acomodações. Engenhosos, os cubanos criaram um sistema de pagamento, para driblar o embargo imposto pelos Estados Unidos, que torna impossível o uso de cartões de crédito. A menos que você realmente seja dependente das comodidades de um hotel, eu recomendo vivamente que você fique em uma dessas casas, para vivenciar a sua arquitetura apaixonante, seus pés direitos altos, sua atmosfera dos anos 50, e o convívio mais próximo e mais verdadeiro com um cubano.

Também seria ótimo se você esquecesse alguma coisa, e tivesse que sair para comprar. Nessa última vez, esqueci a lâmina de barbear. Fui a um pequeno supermercado, e um funcionário explicou que “em lojas normais, você não vai encontrar isso, só com particulares”. Encontrei uma praça, em que havia quiosques e vendedores ambulantes. Não havia lâminas de barbear expostas nem nos balcões dos quiosques nem nas mesas dos ambulantes. Mas saí perguntando, um a um. Até que um ambulante abriu sua mochila, sacou um saquinho com lâminas de barbear, e me vendeu uma a 1 CUC, a moeda conversível, que vale 25 pesos cubanos, ou pouco mais de 1 dólar. Depois fiquei sabendo que era ilegal vender lâminas de barbear em Cuba. É como se todos tivessem que ser “barbudos”, como os revolucionários. Mas quase todos os cubanos vivem perfeitamente barbeados. Ou seja, burlando a lei.

Locomover-se por Havana — e por outras cidades cubanas — é outra experiência única. Há os ônibus, chamados de guaguas, a maioria deles articulados, parecidos com os do Brasil, e que andam frequemente muito cheios. Se você conseguir entrar em um, terá a experiência de pagar 40 centavos de pesos, equivalentes a 2 centavos de dólar. Impossível converter para reais. No próximo degrau da escala de conforto, estão os lotações, ou “máquinas”, carros comuns que vão parando e pegando os passageiros, e custam de 10 a 20 pesos (40 a 80 centavos de dólar), dependendo da distância. Nas áreas turísticas, há “táxis-bicicletas” rebocando bancos para passageiros, que também custam barato. E depois há motos com bancos e tetos em formato de côcos e táxis comuns, ambos com taxímetros, que cobram preços parecidos com os do Brasil.

Os carros cubanos, claro, são um espetáculo à parte. Os sedãs americanos anteriores à Revolução, assim como os Ladas russos posteriores, representam um verdadeiro milagre de longevidade. Todo proprietário desses carros tem de entender de mecânica. E os mecânicos profissionais são mais que isso: torneiros, capazes de adaptar a peça de um Lada para um sedã americano dos anos 40 ou 50. Todo o engenho e talento dos cubanos se manifestam nessas adaptações e na capacidade de conservação, não só dos carros, mas também de eletrodomésticos, que seguem funcionando bem, depois de seis décadas, e das próprias casas. É muito impressionante observar tudo isso no mundo real. A sensação de viagem no tempo se completa com os uniformes dos estudantes, que se parecem com os do Brasil dos anos 70.

O modo de ser dos cubanos também é intrigante, e escapa aos estereótipos. Uma vez, em 2006, eu vi um grupo sacrificando um galo em um ritual de religião africana no alpendre de uma casa em Havana. Aproximei-me devagar, para fotografar, imaginando que me mandariam embora quando me flagrassem. Mas um homem que participava se virou e, ao me ver, abriu o portão e disse: “Venha, chegue mais perto”, e abriu espaço para eu fotografar. Nesse dia, concluí: “Os cubanos são mais brasileiros que os brasileiros”, por sua amabilidade, doçura, alegria de viver, intimidade fácil e informalidade. Mas é mais complexo que isso.

Os cubanos são, em média, definitivamente mais confiáveis que os brasileiros. Claro que existem cubanos malandros, principalmente nos ambientes turísticos. Por exemplo, alguns se aproveitam da coexistência de duas moedas, uma valendo 25 vezes mais que a outra, para cobrar ou entregar o troco de forma errada. Mas, na média, os cubanos têm mais limites, são mais sérios, honestos, pontuais e gentis do que os brasileiros.

Outro aspecto é uma certa severidade e rigidez, um caráter estrito, praticamente ausente em muitos brasileiros. Por exemplo, quando começa a tocar o hino nacional, todos se empertigam, de uma forma solene. E, embora haja muitos dribles, muitos jeitinhos e corrupção, eles parecem levar um pouco mais a sério a autoridade do Estado, o cumprimento das leis. Nesses quase 14 anos de vindas a Cuba, tenho tentando entender se esse traço severo foi introduzido pela Revolução, que afinal instituiu um regime militar e autoritário, ou se já estava presente na cultura cubana. Acho que as duas coisas são verdadeiras. Na comparação com os brasileiros, há uma diferença entre a origem portuguesa e a espanhola. Os espanhóis me parecem mais rígidos que os portugueses. Povos como os colombianos e os chilenos manifestam fortemente essa herança. Ao lado dessa severidade, há uma dignidade, que, aí, sim, me parece vir da Revolução. Os negros, principalmente, que antes eram tratados como inferiores, experimentaram, com o socialismo, uma equiparação de salários com os brancos. E todos os cubanos receberam um doutrinamento que lhes deu uma altivez, relacionada com a ideia de independência e de resistência frente ao que até hoje eles chamam de “imperialismo ianque”. Na África, assim como no Haiti, de forte presença negra, essa altivez também é visível, e às vezes um pouco agressiva. Acho que ela é um componente de muitas culturas africanas. Em Cuba, parece que foi resgatada, ou ganhou uma nova expressão, com a ideologia socialista.

Tudo isso são coisas para observar nos cubanos, como traços de sua singularidade. E há todo esse charme da decadência de uma economia que não funciona. Cuba nunca esbanjou energia, e está em um momento particularmente escuro, depois que a Venezuela reduziu o fornecimento de petróleo. Mesmo ruas altamente turísticas de Havana Velha ficam muito escuras à noite. Ao mesmo tempo, as cidades são muito seguras. A criminalidade é muito baixa em Cuba, comparada com a de outros países latino-americanos — sem falar no Brasil, onde é obscena.

Quando você se acalma em relação a tudo isso, começa a saborear a sensação de estar em um lugar realmente diferente. Começa a viajar. Em um mundo em que tudo está tão padronizado, tão previsível, Cuba é realmente fascinante.

Muito divertido ouvir o rádio e assistir a televisão, com seus formatos arcaicos e sua propaganda incessante. Assim como ler o Granma e o Juventud Rebelde, os porta-vozes do regime. Todo o universo de um regime de partido único comunista, que se tornou souvenir e peça de museu em Moscou, Berlim ou Pequim, segue vivo e real em Havana.

São poucas as “obrigações turísticas”. É fundamental ir ao Museu da Revolução, uma visita rápida e altamente instrutiva. Atrás dele, está o iate Granma, no qual os 82 “expedicionários” se apertaram (é difícil acreditar que couberam todos ali) para atravessar o Golfo do México e desembarcar em Santiago de Cuba, em novembro de 1956. Outros veículos usados na Revolução também estão lá, todos muito pequenos, na escala da ilha que eles conquistaram. Há o Floridita e o La Bodeguita, onde Ernst Hemingay tomava daiquiris e mojitos, respectivamente, e a casa do escritor, afastada do centro, se houver interesse.

De resto, é bater perna e, principalmente, admirar o complexo povo cubano, e suas intrincadas artimanhas não só para sobreviver, mas para desfrutar a vida.

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