Conexão lenta em Cuba

NOVA GERAÇÃO : Marisel Rivero ganha a vida como cambista de cartões de conexão da internet para celular. Os jovens mostram indiferença pelo legado de Fidel/ Luis Enrique Ascui/ Polaris

Lourival Sant’Anna, de Havana

Na calçada escura em frente a uma agência da Etecsa, a companhia estatal de telefonia cubana, a tela do celular de marca chinesa ilumina o rosto de Marisel Rivero, enquanto ela baixa músicas de reagaton, o ritmo da moda em Cuba, e canções românticas. Ao seu redor, dezenas de jovens, sentados nas muretas, usam a conexão wifi da agência para navegar com seus cartões de uma hora, que a estatal vende por 2 CUCs, a moeda conversível cubana, que equivale a 2 dólares, ou 25 pesos. As feições concentradas dos jovens, enquanto seus dedos se movem com sofreguidão, revelam o quanto esse é um momento precioso: o salário médio na ilha é de 25 dólares. Uma estudante de informática de 24 anos, que recebe 300 pesos (12 dólares) por mês em uma estatal do setor elétrico, e pede para não ter seu nome publicado, conta, sem tirar os olhos do celular, que só se conecta duas horas por mês, enquanto troca mensagens e compartilha fotos no Facebook com seus amigos na Argentina, Espanha e Venezuela. Os cubanos comuns não têm computadores. O serviço de wifi em casa custa proibitivos 129 dólares por mês e conexões 3G para os celulares só são concedidas para os VIPs, pessoas selecionadas pelo regime. Aos 26 anos, Marisel é uma empresária de sucesso, embora sua atividade seja ilegal: espécie de cambista de cartões de conexão, ela os compra por 2 dólares e vende por 3. E por que as pessoas aceitam pagar mais? “Porque compramos tudo”, explica a moça com um sorriso. “E também para não terem de pegar as filas enormes.” No ramo há um ano, Marisel fatura entre 10 e 15 dólares por dia. Antes, ela fez um curso de cabeleireira e abriu um salão, com ajuda de sua mãe, que trabalha em uma sorveteria. “Mas tinha poucos clientes, e acabei perdendo dinheiro”, conta. “Este trabalho tem muito risco, porque é ilegal.” Danil Herrera, também de 26 anos, deu um passo a mais na próspera indústria da conexão: adquiriu por 400 dólares um roteador contrabandeado dos Estados Unidos, instalou-o na copa de uma árvore na calçada da Etecsa e compartilha o wifi com 10 a 15 clientes, por 1 dólar a hora. Exemplos do empreendedorismo cubano.

O esforço dos cubanos para se conectar ao mundo, que os leva a se aglomerar dia e noite ao redor das agências da Etecsa, serve como metáfora da vida de um povo a quem foi oferecida uma pequena brecha, que vai se abrindo muito lentamente.  À pergunta sobre o que acontecerá com a morte de Fidel Castro, muitos respondem a mesma coisa: “Tudo seguirá igual”. O que significa que tudo seguirá mudando, mas ao ritmo definido pelo slogan preferido do líder máximo – e agora único — do país, Raúl Castro: “Sem pressa e sem pausa”. Tido como mais repressor na política e mais liberal na economia do que seu irmão mais velho, Raúl, que assumiu em 2006 com a doença de Fidel, lançou a partir de 2011 uma série de reformas que permitiu a venda de casas e de carros e maior participação privada nos setores de comércio e serviços, trazendo relativa prosperidade.

Em grande medida, no caso dos jovens, a frase revela uma certa indiferença, ou resignação com o fato de que simplesmente não se sabe o que vai acontecer na ilha, cujo destino é decidido por um círculo muito pequeno e inacessível de dirigentes do Partido Comunista e militares. “Eu vivo o dia a dia, como se fosse o último da minha vida, aproveitando o tempo ao máximo”, diz Raúl Hernández, de 25 anos, que dá aulas de informática em uma universidade. “Não sabemos se estaremos vivos amanhã”, arremata Raúl, abrindo um maço de Hollywood, que custa 1,30 dólar, e contando que se diverte indo a festas e praticando luta livre. Ele reconhece que na sua área as coisas estão progredindo: “Há dois anos, a rede na universidade era um pouco restrita, mas agora está melhor”. Raúl, que se tornou professor universitário este ano, ganha 595 pesos (23,80 dólares) por mês. Ele consegue sobreviver porque mora com o pai, que é gerente em uma destilharia de rum, e a mãe, almoxarife de um restaurante. Mas diz que, a partir do terceiro ano, seu salário subirá 60 pesos por ano.

A imagem segundo a qual todo cubano sonha deixar o país não se aplica a Joan Torres, um homossexual negro de 19 anos. Sua mãe mora na Espanha, junto com seu irmão de 22 anos, e o sustenta enviando dinheiro de lá. “Nao quero ir para a Espanha. Gosto de Cuba, de sair para a rua”, explica Joan, que largou a escola no 2º. ano do ensino médio. “Aqui há mais liberdade para os gays do que na Espanha”, acredita o jovem. Sua amiga Dianelis Díaz, de 22 anos, trabalha há 4, desde que concluiu o ensino médio, com esterilização em um hospital público, mas está em licença de maternidade, que em Cuba dura um ano. “Para mim, continua sempre tudo igual, tudo bem”, afirma Dianelis. “Não sei o que vai acontecer, mas Raúl leva bem este país, e nada vai acontecer.” Ela diz que votou uma vez para representante na Assembleia Municipal – o único nivel no qual os cubanos votam diretamente, depois participando apenas de um plebiscito sobre a escolha dos representantes provinciais e nacionais, de uma lista formada pelos municipais e por delegados nomeados pela Comissão de Candidaturas. “Votei nele porque eu o conhecia, mas para mim a política não importa, porque ao final vejo tudo igual.”

Na outra ponta do espectro geracional, o casal Jorge Reyes, de 74 anos, e Aurora Hernández, de 75, ambos participantes da Revolução de 1959, também acredita que nada vai mudar, embora essa crença venha carregada de um forte vínculo emocional, em lugar do distanciamento e da indiferença de muitos jovens. “Cuba sempre será Cuba”, resume Aurora, cujo avô foi mambis – camponeses que lutavam pela independência de Cuba enfrentando com facões os espanhóis com suas armas de fogo. Os dois choram ao falar da morte de Fidel. Na época com 17 e 18 anos, respectivamente, Jorge e Aurora se juntaram à milícia popular quando a guerrilha, liderada por Fidel, ocupava a Sierra Maestra, perto de onde ambos viviam. Negros, Jorge e Aurora eram filhos de camponeses pobres, e afirmam que não teriam tido acesso a nada do que tiveram, se não fosse a Revolução. Jorge foi engraxate e trabalhava na limpeza de um escritório em Bayamo, no leste do país. Depois da Revolução, entrou para o Exército, e entre 1986 e 89 comandou tropas em Angola, onde Cuba apoiou o governo de esquerda do MPLA, contra as forças da Unita, aliada do regime sul-africano do apartheid.

Essa guerra ajudou a construir uma aura de “nobreza” e “autruísmo” em torno das Forças Armadas Revolucionárias (FAR) e do próprio regime cubano, até hoje explorada nas escolas e na propaganda do goveno. “Cuba não estava buscando ouro, diamante ou petróleo, só a liberdade de um povo que sofria enquanto a África era o playground dos poderosos”, exaltou o presidente sul-africano, Jacob Zuma, ao falar do “sacrifício desinteressado do companheiro Fidel”, na homenagem na noite de terça-feira, 29, na Praça da Revolução, em Havana, quando discursaram os governantes de outros países antiamericanos, como Equador, Bolívia, Venezuela, Irã, China e Rússia. Ao voltar de Angola, Jorge assumiu o importante cargo de vice-ministro do Açúcar, entre 1989 e 2000, e, depois, de gerente de uma empresa de ônibus, até 2012, quando se aposentou. Hoje, recebe 700 pesos (28 dólares) de aposentadoria. Jorge confirma a visão de que Raúl é mais liberal na economia do que Fidel, mas garante que os princípios da Revolução seguirão intactos. “Esse jovem que fica vidrado no celular, quando o convocam, ele se levanta para lutar”, aposta. “Mais de 80% da juventude está de acordo com morrer de fome mas não se dobrar, não perder a independência.”

O casal teve duas filhas: Aurora, engenheira eletricista, e Damaris, médica, que fez mestrado em pneumonologia, e trabalha em um hospital, onde ganha 1.000 pesos (40 dólares). Sua irmã deixou a profissao há quatro anos, quando tinha um cargo alto em uma estatal, onde também tinha o salário relativamente alto de 40 dólares, e hoje vive de alugar seu apartamento para estrangeiros, por 35 dólares a diária. Essa tem sido uma importante fonte de renda para muitos cubanos, que vivem em antigas casas confortáveis, uma espécie de herança da Revolução, que as entregou para seus moradores. No caso de inquilinos, eles tiveram que pagar prestações equivalentes a 10% de seus salários, até quitar a propriedade, avaliada bem abaixo dos preços da época. Muitos cubano-americanos que até hoje vociferam contra o regime na Flórida eram donos dessas casas, assim como de outras propriedades confiscadas pelo Estado. Raúl tem procurado ativar a economia oferecendo subsídios para materiais de construção, provocando um certo boom no setor. Cerca de 100 mil casas têm sido construídas por ano, e muitos cubanos estão fazendo também pequenas reformas. O pedreiro Alberto Salas, de 29 anos, conta que, antes das reformas de Raúl, recebia 500 pesos (20 dólares) por mês. Hoje, sua renda varia, de acordo com o serviço, entre 2 mil e 4 mil pesos (80 e 160 dólares). “Às vezes, falta material”, diz Salas, apressando-se a acrescentar: “Creio que por causa do bloqueio”. O embargo americano, chamado em Cuba de “bloqueio”, é a justificativa oficial para qualquer problema econômico na ilha. Salas é de Las Tunas, no leste da ilha, mas não precisa gastar com moradia em Havana porque usa o alojamento de uma construtora privada, que tem uma obra na Escola Militar. Ele conta que tem feito serviços em casas, padarias e hotéis. “As coisas vêm melhorando”, celebra.

Muitas outras atividades têm injetado dinheiro na economia nos últimos anos, garantido o acesso dos cubanos a melhor alimentação, roupas, artigos de higiene, etc., e ao mesmo tempo provocado uma fuga de profissões que exigem ensino superior. Mais de 700 mil pessoas – de uma populaçao de 11 milhões – agora se dedicam a serviços, que o regime reconhece que o Estado não é capaz de exercer bem, como pequenos restaurantes, locadoras e oficinas de automóveis, costureiros, sapateiros, consertos de eletrodomésticos, reparos domésticos, cabeleireiros, manicures, etc.

Até um mês atrás, a advogada Greta Carrasco, de 33 anos, era assessora jurídica do Banco Exterior de Cuba, onde cuidava dos contratos de créditos com empresas e operações internacionais. Greta recebia um salário básico de 27 dólares e mais uma remuneração por produção – outra novidade introduzida por Raúl no serviço público —, que variava entre 1.200 e 1.600 pesos (48 a 64 dólares). Sua renda estava muito acima da média dos cubanos. Mesmo assim, Greta agora ganha o dobro vendendo sucos e saladas de frutas em uma barraca de uma cooperativa de agricultores. Sua remuneração continua variável, dependendo das vendas, mas em média ela fatura 45 dólares por semana. Um copo de 200 ml de suco custa apenas 3 pesos (0,12 dólar) e o de salada de frutas, 5 pesos (0,20 dólar), e a barraca vive cheia de fregueses. Às 10 horas da manhã de quarta-feira, 30, a van que abastece a barraca já tinha vindo três vezes.

“Minha vida com certeza melhorou”, atesta Greta. “No país, não vai mudar nada. Sabíamos que isso ia acontecer”, diz ela, referindo-se à morte de Fidel, aos 90 anos, e depois de dez anos enfrentando uma doença intestinal. “Não pensávamos que seria tão em breve. Mas ele deixou o governo justamente para isso.” E os cubanos não têm anseios de liberdade, democracia? “Isso se vem debatendo, nas universidades, por exemplo”, reconhece ela. “Não temos muitos problemas com eleições, porque são a mesma coisa em todo lugar. Nas eleições diretas, a escolha é apenas aparente. Veja o caso de (George W.) Bush e de (Donald)Trump.” Os dois foram eleitos pelo Colégio Eleitoral, depois de perder no voto popular, em 2000 e neste ano, respectivamente. Nem todos os cubanos estão resignados com esse sistema político, e com a estratégia de Raúl de propiciar gradualmente mais prosperidade para a populaçao, ao mesmo tempo em que mantém nas maos do Partido Comunista as rédeas do poder, como na China e no Vietnã. O compositor de música erudita Alberto Mariño, de 29 anos, é um dos líderes de uma campanha pela realização de um plebiscito, para consultar a população sobre se quer a continuidade do regime de partido único ou a introdução de eleições diretas para todos os cargos, multipartidarismo, liberdade de expressão, de associação e econômica e anistia para os presos políticos.

Segundo Mariño, a lei cubana prevê a realização de plebiscito, mediante a coleta de 10 mil assinaturas, mas isso nunca foi obedecido. Em 2002, o chamado Projeto Varela, em homenagem ao padre espanhol Félix Varela, que lutou pela independência cubana, foram colhidas 11 mil assinaturas em favor de um plebiscito sobre os mesmos temas e, depois de apresentadas à Assembleia Nacional, outras 14 mil. Mesmo assim, o pedido foi ignorado. Seguiu-se a prisão, em março de 2003, de 75 ativistas envolvidos na campanha, no que ficou conhecido como “Primavera Negra”.

Diante das pressões internacionais, que incluíram a ruptura de vários intelectuais de esquerda de outros países com o regime castrista, os ativistas foram soltos, 65 deles expulsos de Cuba e proibidos de voltar e os outros 12, de deixar a ilha. O principal articulador do movimento, Osvaldo Payá, morreu há quatro anos em um acidente de carro que, segundo Mariño e outros militantes, foi na verdade um assassinato. A filha de Payá, Rosa María, exilada há um ano em Miami, participa da atual campanha pelo plebiscito.

Mariño diz que, diferentemente de outros ativistas, incluindo sua irmã, María de Lourdes, nunca foi preso, e isso, paradoxalmente, o preocupa: “Payá também nunca prenderam, mas o mataram”.

Já o cineasta e historiador Boris González, também ativista pró-democracia, foi detido durante quatro dias na virada de 2014 para 2015, e em seguida demitido da prestigiosa Universidade de San António de los Baños, fundada por Fidel e pelo escritor colombiano Gabriel García Márquez. González era professor de cinema lá. O que desencadeou sua demissão foi sua participação em uma performance da artista plástica cubana Tania Bruguera, radicada em Nova York. A artista encenou uma “tribuna invertida” na Praça da Revolução, na qual ela ouvia os participantes, em vez de eles a terem de escutar, como ocorre nos pronunciamentos dos líderes cubanos. Tania ficou seis meses sem poder sair de Cuba, e teve seu laptop apreendido.

Há dois anos, González vem estudando a complexa lei eleitoral cubana, para propor mudanças que não sejam tão radicais a ponto de serem facilmente descartadas pelo regime — que reagiu ao Projeto Varela declarando o socialismo “irrevogável”. Ele constatou que a lei tem muitas imprecisões e trechos incompreensíveis, que dão margem para o regime “fazer o que quer”. Na sua visão, a mudança mais importante seria acabar com a Comissão de Candidaturas, que tem o poder de incluir na lista de candidatos às assembleias provinciais e nacionais pessoas que não foram eleitas representantes municipais, no único pleito do qual os cidadãos participam diretamente. Para González, uma vez eliminada essa “aberração”, os cidadãos poderiam participar das outras eleições, também. Seu movimento, chamado “Outro 18”, em alusão ao anúncio de Raúl de que deixará o poder em 2018, pretende lançar 80 candidatos independentes nas eleições municipais de 2017, que darão início ao processo que desembocará na escolha do chefe de Estado no ano seguinte.

Mas esses planos se chocam visivelmente com os de Raúl e seus aliados nas Forças Armadas, de barganhar aspirações de liberdade política por prosperidade material.

Publicado na revista Época. Copyright: Editora Globo. Todos os direitos reservados

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