A trajetória de Juan Carlos é uma versão particular da história do regime castrista em Cuba
HAVANA – Juan Carlos tinha um ano e meio de idade quando o ditador Fulgencio Batista fugiu de Havana, na passagem de 1958 para 59, abrindo caminho para a tomada do poder pelos revolucionários. Praticamente com a mesma idade da Revolução, sua vida equivale a uma versão particular da história do país.
Seu pai era gerente de uma mina de cobre em Pinar del Río, no oeste da ilha, e representante da fábrica de rum Bacardi. Juan Carlos se lembra do Dodge 54, do rádio portátil e de outras comodidades da classe média alta de Cuba na época. A Revolução nacionalizou a mina e confiscou a fábrica. Os patrões e colegas de seu pai fugiram do país. O dono da mina, um milionário espanhol, queria que ele fosse com a família para Miami, até ser transferido para o Brasil ou para a Austrália, onde tinha negócios.
Ele preferiu esperar pela definição do destino. O novo regime fechou as fronteiras e a família não pôde partir. Juan Carlos (não é seu nome verdadeiro) lembra dos passaportes prontos para a viagem, que ficaram guardados em casa por muito tempo. Agrimensor de formação, seu pai comprou, com um genro, uma fazenda ao sul de Havana. Mas o regime a confiscou. Ele foi então trabalhar como fiscal de edificações em Havana Velha, com seus casarões coloniais sem manutenção.
Em 1980, o pai de Juan Carlos foi premiado pelos seus bons serviços com o direito de comprar a prazo, por 3.838 pesos, um Lada Moscovitch. Em Cuba, até hoje, só se pode comprar carro com autorização do governo. Os carros de placa azul, marrom e branca são do Estado, dirigidos por burocratas. Os de placa laranja são de empresas estrangeiras ou de seus funcionários também estrangeiros. Os de placa amarela são de cubanos premiados como funcionários exemplares ou por terem desempenhado alguma missão dentro ou fora do país (como um médico de Havana que trabalhou nove anos no interior), diplomatas, atletas e artistas de destaque.
Depois de terminar o ensino médio em 1977, Juan Carlos foi prestar serviço militar. Sem consultá-lo, seus comandantes decidiram que ele seguiria carreira militar. No ano seguinte, ele foi mandado para Moscou, onde estudou durante cinco anos na Escola de Comando. Voltou como subtenente em 1983.
Juan Carlos recorda os anos 80 como os melhores de sua vida. Cuba recebia na época a ajuda da União Soviética e sua economia era ainda estimulada pelas atividades do Departamento para Romper o Bloqueio, um órgão do Ministério do Interior criado para driblar os efeitos do embargo americano, que acabou envolvido com narcotráfico. No final da década, como capitão do Exército, ele recebia 400 pesos por mês. “Era um tremendo salário”, lembra.
Tudo mudou com o fim da União Soviética. Em agosto de 1990, teve início o chamado “período especial em tempo de paz”, uma época de penúria em que a maioria dos cubanos literalmente emagreceu. “Meu salário passou a valer o equivalente a US$ 3”, diz Juan Carlos. Os militares passaram a desviar comida, materiais e equipamentos do Exército para sobreviver. “Era imoral.” Ele deu baixa como capitão em 1993. Naquele ano, vendeu as alianças de casamento por US$ 12, para comprar tênis e material escolar para sua filha. Passou a fazer biscates como marceneiro.
Em 1995, quando seu pai se aposentou, Juan Carlos pediu-lhe o Lada para trabalhar como taxista, em troca ajudando no seu sustento. Trabalhou legalmente por menos de um ano: teve a licença cancelada, porque o carro não estava no seu nome, e a lei cubana proíbe a transferência.
“Tive que continuar ilegalmente”, diz ele. “Vieram os problemas com a polícia. Alguns se contentam com qualquer coisa. A outros você tem que dar o que eles pedem.” A propina chega a 25 CUCs (US$ 31,25). Como efeito das reformas que permitiram alguma atividade privada no setor de serviços, entre 1993 e 1995, Juan Carlos lembra de um período de relativa bonança, até 2004. Nessa época, ele tirava cerca de 150 CUCs (US$ 187,50) por mês, transportando principalmente estrangeiros, mas também cubanos bem-remunerados.
A situação voltou a piorar em 2004. A partir daí, a economia cubana passou a crescer mais, impulsionada pela ajuda da Venezuela de Hugo Chávez. No ano passado, o crescimento foi de 4,3%. Mas, com a folga dada pelos petrodólares venezuelanos, e a menor necessidade de moeda forte, o regime cubano enrijeceu de novo o controle sobre as atividades privadas. Muitos “paladares”, como são chamados os pequenos restaurantes de até 12 cadeiras, e também outros serviços foram fechados. Juan Carlos perdeu passageiros e mobilidade, com a polícia por toda parte. Hoje, ele tira cerca de 50 CUCs (US$ 62,50) por mês.
Ele, a mulher, a filha de 20 anos e o filho de 11 vestem roupas doadas por um casal espanhol que se tornou amigo da família e vem visitá-los quase todos os anos. Ele trocou a casa que herdara do irmão – que trabalhava na Marinha Mercante e fugiu para o Canadá – por um apartamento. Os espanhóis bancaram a diferença de US$ 5 mil. Quando vêm visitá-los, todos os anos, hospedam-se lá. “Eles são nossa salvação”, diz Juan Carlos.
Sua filha estuda informática na universidade e dá aula em um telecentro. Nem ela nem seus alunos podem navegar na internet. Têm acesso apenas ao correio eletrônico. Quando sua filha tinha 16 anos, Juan Carlos lhe deu um computador de contrabando. Este ano, ela pôde comprar legalmente um computador chinês.
Juan Carlos, como muitos cubanos, tinha desde 2005 uma linha de celular no nome de estrangeiros – presente dos espanhóis. Este ano, pôde colocar uma linha no seu nome, depois que o governo autorizou cubanos a terem celulares.
“Espero que Raúl comece a buscar métodos para que as pessoas possam trabalhar”, diz Juan Carlos. “Mas me parece utópico, porque as condições não estão dadas. A diferença entre o que se ganha e o que se precisa para viver é muito grande. Somos obrigados a fazer coisas ilegais.”
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