Imagem positiva se mantém proibindo-se estrangeiros de entrar em hospitais para cubanos
HAVANA – María de la Caridad olha no relógio, preocupada. Passa da 1 da tarde e ela ainda não vendeu nenhum livro. “Todos os dias, tenho que dar US$ 4 para El Historiador”, diz ela, apontando para o Edificio de los Capitanes Generales, em frente a seu sebo. Eusebio Leal, o Historiador, é um amigo de Fidel Castro responsável pelo patrimônio histórico de Cuba. Para deixar que María monte sua banca de livros usados na frente de seu imponente escritório, no centro colonial de Havana, cobra-lhe a taxa diária pessoalmente. Além dos US$ 31 que ela tem de pagar de imposto ao Estado por mês.
O contrato do Historiador com a vendedora de livros é apenas um exemplo pitoresco da privatização do Estado cubano por Fidel e seus amigos. Espécie de dono da ilha, o presidente gerencia pessoalmente, ou com gente de sua confiança, todos os grandes negócios que se fazem por aqui: as exportações de açúcar, fumo e café; as joint-ventures com empresas estrangeiras, que podem ter no máximo 49% do controle; e até os produtos doados por entidades e governos, de ônibus a remédios, que são vendidos em dólares no país.
Nas joint-ventures, as empresas estrangeiras são obrigadas a pagar os salários e encargos sociais dos empregados em dólares para o governo, que intermedeia sua contratação. Ao repassar aos funcionários, no entanto, o governo os converte nominalmente em pesos a 1 para 1 – a cotação oficial. Embolsa a moeda forte e os restantes 25 pesos, já que 1 dólar está fixado em 26 pesos pelo próprio governo, no mercado de câmbio.
O Estado está privatizado também na escala das relações entre os servidores e os usuários. Para que a professora se interesse minimamente pelo ensino de seus filhos, os pais devem enviar merenda também para ela. Para ser atendido por um médico, é preciso dar-lhe presentes. Mesmo assim, o atendimento é precário. No Hospital La Dependencia, um dos maiores de Havana, um paciente aguardava na terça-feira, em jejum, para fazer uma pequena cirurgia de desobstrução de um vaso na virilha. A cirurgia, marcada para as 8 horas, foi feita às 17h30. E isso porque o paciente era amigo de um médico do hospital.
La Dependencia, como a maioria dos edifícios e casas de Havana, parece nunca ter sido reparado desde a Revolução de 59. Há várias alas desativadas, mas mesmo as que estão em funcionamento não têm aparência muito melhor. Baratas passeiam tranqüilamente pela sala de cirurgia. Partes do reboco caíram. As janelas não têm vidros. As paredes das salas de espera estão cobertas de fezes de morcegos.
Num outro hospital público, um homem conta que engessaram torto o pé de sua mulher. Depois de 21 dias, quando foi tirar o gesso, o médico constatou o erro. Ela terá de ficar mais 21 dias com o pé engessado. O filho de um engenheiro conta que seu pai morreu depois de parada cardíaca na unidade de terapia intensiva, porque o equipamento que fazia gotejar o medicamento em sua veia estava avariado.
O mito da saúde pública de Cuba é mantido de maneira simples: é proibida a entrada de estrangeiros nos hospitais freqüentados pelos cubanos. Para diplomatas, turistas e estrangeiros residentes, o governo mantém hospitais especiais, onde se paga em dólar. São do mesmo padrão dos hospitais particulares das grandes cidades brasileiras. Mas aí é proibida a entrada de cubanos, mesmo que tenham dólares.
O mesmo ocorre com as farmácias. As que são freqüentadas por cubanos sofrem de enorme escassez de medicamentos mais sofisticados – e para doenças mais graves. Em contrapartida, nas “farmácias internacionais”, onde se compra em dólares e só estrangeiros podem entrar, há de tudo – incluindo produtos fabricados nos EUA, apesar do embargo.
O contato entre estrangeiros e cubanos é restringido ao mínimo. Seguranças com rádios controlam a entrada nos hotéis. Os cubanos só podem entrar se tiverem o nome de um hóspede com quem vão se encontrar. E não podem passar do lobby. Nos restaurantes e lojas para turistas, só entram acompanhados de estrangeiros. E os seguranças lhes vigiam cada passo.
O motivo é tanto político quanto econômico. O governo quer que os dólares dos estrangeiros fiquem com as lojas e restaurantes estatais, e com os táxis e outros serviços licenciados pelo Estado, que deles cobra taxas. Além disso, os funcionários dos hotéis estatais e os motoristas de táxi também atuam como informantes do governo.
A segregação, no entanto, não é perfeita. Amáveis, comunicativos e sobretudo necessitados de dólares, os cubanos acabam conseguindo se aproximar e contar um pouco de sua história aos estrangeiros.
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