Para viver, povo tem de ‘luchar’

Maioria dos cubanos desvia o que pode de órgãos estatais para vender no mercado negro

HAVANA – Júnior espera, atento, perto da entrada do supermercado. Quando entra um turista, esse negro alto e magro, de 22 anos, o aborda em várias línguas, até localizar a origem de seu novo cliente. Mas embora esteja ali a propósito de um estágio de seu primeiro ano de economia na Universidade de Havana, Júnior tem outros negócios em mente.

“Mister, por favor, compre um saco de leite em pó para minha filha de 3 anos, que eu lhe consigo charutos muito baratos”, propõe ele. Ao sinal afirmativo do turista, abraça-o efusivamente, encostando a cabeça em seu peito: “O senhor não sabe o favor que me está fazendo.” O leite não é vendido nessa “loja de arrecadação de divisas”, como o governo chama os estabelecimentos estatais que só aceitam dólares.

Mas numa pequena mercearia particular a meia quadra dali. Júnior guia o turista até a mercearia, onde um saco de leite em pó que rende 10 litros custa US$ 5,95. “Se quiser, podemos ir até minha casa, para o senhor conhecer minha filha, para ver que não estou mentindo, e para ver os charutos”, insiste Júnior, usando o termo em português, que aprendeu com umas brasileiras semanas atrás. Ele mora com a filha, a mulher, os irmãos e a mãe num cortiço a três quadras do supermercado.

Seu irmão mais velho, chefe de produção numa fábrica de charutos, recebe o cliente sem camisa, tomando cerveja, sem abaixar o volume da rumba no seu estéreo portátil. Vai buscar a mercadoria no quarto, enquanto Júnior explica que, todas as noites, o irmão traz da fábrica cinco caixas de charuto, deixando de US$ 5 a US$ 10 para os funcionários que encobrem o furto.

O preço depende da cara do freguês. Mas uma caixa de madeira do mais requintado Cohiba, com 25 charutos, que custa US$ 335 nas lojas do governo, pode sair por US$ 25. É possível que Júnior, negociante nato, vá vender também o saco de leite em pó que acaba de ganhar.

Júnior e seu irmão não são exceção. A ilegalidade faz parte do cotidiano dos cubanos. O principal motivo pelo qual a maioria deles se emprega nas fábricas, lojas, escritórios, restaurantes, hotéis, portos, enfim, qualquer empresa do governo, são as oportunidades de negócios escusos, ou, como eles dizem, de “luchar”.

“Minha sobrinha trabalha no Comitê Militar (de recrutamento para o serviço obrigatório), é militante da Juventude Comunista, mas, quando precisa comprar alguma coisa no mercado negro, ela compra”, exemplifica uma aposentada de 73 anos. “Aqui, quem não rouba morre de fome. As pessoas trabalham nos lugares para ter chance de levar alguma coisa para vender, seja galão de tinta, óleo, carne, qualquer coisa serve.”

Um engenheiro que dirige uma empresa estatal de construção e defende as conquistas sociais da Revolução conta que terá de demitir um motorista porque ele está usando abertamente um caminhão da companhia para fretes de mudanças particulares, enquanto os diretores vivem em reuniões sobre como economizar o escasso combustível. “Se ele fosse mais discreto, andando pela periferia, tudo bem, pois sei que todos têm de ‘luchar'”, pondera o diretor.

Salário bom em Cuba são 300 pesos por mês (US$ 12). É o que ganha, por exemplo, um engenheiro que dirige o departamento de manutenção de uma grande empresa do governo. Quando as metas de produção são cumpridas, ele recebe 3% desse valor nominal em dólares: US$ 9. Os operários, que ganham na faixa de 150 pesos, recebem 4% de abono em dólares.

Os pesos têm algum valor nos armazéns estatais, conhecidos como bodegas, onde se fazem compras com cadernetas, que estipulam a quantidade de mercadoria que cada família pode levar por mês, de acordo com o número de integrantes.

Em Havana, cada pessoa tem direito a 3 quilos de arroz por mês, a 48 centavos (o equivalente a US$ 0,02) o quilo; 250 gramas de feijão, a 12 centavos; 1,5 quilo de açúcar, a 28 centavos o quilo; seis ovos, a 15 centavos cada; e 250 gramas de frango duas vezes ao mês (se houver), a 1,40 o quilo. Carne de vaca, só para pessoas que necessitam de dietas especiais, como diabéticos, mediante atestado médico.

Crianças de até 7 anos de idade têm direito a 1 litro de leite por dia, ao preço de 50 centavos. Cada pessoa pode comprar um sabonete por mês, a 25 centavos. As mulheres recebem de três a quatro absorventes para menstruação por mês. Quando acabam, muitas usam pedaços de pano.

Muitas vezes nem essas cotas reduzidas são cumpridas, porque simplesmente não se encontram os produtos nas bodegas, cujas prateleiras estão freqüentemente vazias. No interior do país, as cotas são ainda menores. E em geral há bem menos oportunidades de obter dólares fazendo negócios com turistas.

Para complementar o abastecimento da casa, é preciso “luchar” para conseguir dólares. Nas pequenas lojas particulares e nos estabelecimentos de “arrecadação de divisas” do governo, onde só se aceitam dólares, os preços se parecem com os do Brasil: um pacote de macarrão sai por US$ 0,70; meio quilo de leite em pó, US$ 1,90; um quilo de arroz, US$ 0,95; um litro de óleo, US$ 2; um xampu, US$ 1 e assim por diante.

No mercado negro, os produtos, em geral roubados das fábricas ou contrabandeados dos centros de distribuição e restaurantes estatais, são um pouco mais baratos. Uma coxa e meio quadril de frango custa US$ 0,5 no mercado negro; meio quilo de carne sai por US$ 2. É um delito grave comprar no mercado negro. Nas duas pontas, para conseguir dólares, a 1 por 26 pesos, e para comprar o que necessitam, os cubanos precisam fazer algo ilícito.

Os restaurantes privados podem ter no máximo 12 cadeiras – a escala exata para não ter lucratividade. Empregados são proibidos: só a família pode trabalhar. Os agricultores que vendem seus produtos nos mercados em Havana não podem usar intermediários: em tese, teriam de deixar suas chácaras todos os dias e viajar até a capital. São leis impossíveis de cumprir. Os pequenos fabricantes de doces, bolos, etc., não encontram ingredientes nas lojas do Estado. Têm de comprá-los no mercado negro. E assim por diante.

“O governo tem toda a população chantageada”, diz um ex-oficial do Exército que ganha a vida com um lotação sem licença. “Todos infringem alguma lei.” Outro dia, um policial o parou, com três passageiros atrás. “De onde você tira os dólares para comprar gasolina?”, perguntou-lhe. Motoristas de táxi com licença compram o litro da gasolina premium nos postos do governo por US$ 0,30, enquanto os carros comuns pagam US$ 0,75 nesses postos, ou US$ 0,60 no mercado negro.

“Tiro do mesmo lugar que você tira para comprar comida”, respondeu o motorista, numa explosão de raiva. “Quanto você ganha por mês?”, perguntou ao policial, que, depois de relutar, respondeu: 250 pesos (US$ 10). “Então, você também não tem que ‘luchar’ como todo mundo?”, continuou o motorista. O policial deixou-o passar dessa vez, mas disse que da próxima a multa seria de 1.500 pesos.

“Um casal com dois filhos precisa de US$ 200 por mês para viver como pessoa”, estima um pai de família que ganha a vida como fotógrafo de porta em porta, cobrando US$ 6 por cinco retratos.

“Quando estava Fidel, ainda se podia comer bem”, diz Soledad, uma viúva de 75 anos, que recebe 90 pesos (US$ 3,46) de aposentadoria por mês. Fidel Castro continua no poder, mas ela associa seu nome ao período de relativa bonança, quando Cuba não precisava tanto de dólares: trocava seu açúcar, fumo e café pelos produtos da antiga União Soviética e dos outros países comunistas do Leste Europeu.

Soledad trabalhou a vida toda numa fábrica de troféus. Agora, ganha a vida como muitos velhos: levanta-se às 5 da manhã, vai até as bancas estatais e compra os jornais de propaganda do governo (os únicos permitidos) por 20 centavos, para vendê-los a 1 peso nas ruas de Havana. Com isso, tira cerca de 30 pesos por dia, ou um pouco mais de US$ 1. “A vida aqui está muito dura”, resume. “Ninguém bate à minha porta para me ajudar.”

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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