Fama de reformista do presidente cubano não se refletiu em mudanças práticas na vida da população
HAVANA – A transferência do poder de Fidel Castro para seu irmão Raúl, a partir de julho de 2006, gerou expectativas em Cuba. No plano econômico, Raúl era tido como mais pragmático que o irmão, e supostamente partidário de uma transição do socialismo para um capitalismo de Estado como a experimentada pela China. Teria sido ele quem convenceu Fidel a autorizar alguma atividade privada no início dos anos 90. Passados dois anos e meio, essas esperanças foram frustradas por falta de mudanças concretas. Quanto aos últimos discursos de Raúl, eles parecem apontar não para a abertura, mas para o recrudescimento.
A reputação de modernizador de Raúl foi confirmada por um discurso que ele proferiu no dia 26 de julho de 2007, no 54º aniversário do assalto ao Quartel de La Moncada, que marcou o início da luta armada. “Somos conscientes de que em meio às extremas dificuldades objetivas que enfrentamos, o salário ainda é claramente insuficiente para satisfazer todas as necessidades”, reconheceu Raúl, numa prova rara de contato de um dirigente cubano com a realidade. Em seguida, ele tocou em dois pontos sensíveis da Revolução, acenando com reformas estruturais.
“Estamos diante do imperativo de fazer a terra produzir mais. Para alcançar esse objetivo, será preciso introduzir as mudanças estruturais e de conceitos que resultarem necessárias”, declarou o então presidente interino, oficializado no cargo em fevereiro deste ano. “Igualmente se requer, sempre que for racional, recuperar a produção industrial nacional e incorporar novas regras. Nesse sentido, estudamos o incremento do investimento estrangeiro, sempre que aporte capital, tecnologia ou mercado.”
Desse discurso para cá, disseram ao Estado dois economistas, que preferiram não ser identificados para evitar represálias, a única mudança palpável foi uma tímida liberalização da propriedade da terra, que permite aos agricultores arrendarem-na por períodos determinados, sem direito de passá-la de herança para os filhos. “Que agricultor vai querer investir todos os seus recursos e sua saúde, nessas condições?”, pergunta um especialista em economia agrícola. Em Cuba, 90% das terras pertencem ao Estado. Do restante, cerca de 5% são de cooperativas e os outros 5% estão nas mãos de indivíduos. Esses 10% não-estatais respondem por 60% da produção agrícola do país. Quanto à atração de investimentos estrangeiros, nada de notável foi feito até aqui.
No início do ano, depois da confirmação de Raúl no cargo de presidente, duas medidas foram festejadas na imprensa como sinais de liberalização. A posse de celulares pelos cidadãos comuns, antes proibida, foi autorizada. Como acontece com a maioria das proibições em Cuba, essa também era violada, e cerca de 110 mil cubanos tinham linhas no nome de estrangeiros. Com a liberação, outros 130 mil cubanos adquiriram linhas, ao preço, proibitivo para a maioria, de US$ 62,50. O minuto, tanto para receber quanto fazer chamadas, custa cerca de US$ 0,50. O salário médio em Cuba é de US$ 20. De qualquer maneira, é um avanço. “É importante, porque quando se começa a abrir, é um caminho sem volta”, analisa um sociólogo. “As pessoas perguntam: ‘Se ele tem, por que eu não posso ter?'”
Antes, ter computador em casa, mesmo desconectado da rede, sem autorização do governo – que não a dá a cidadãos comuns – era crime. As pessoas montavam máquinas com peças contrabandeadas. Agora, computadores de fabricação chinesa estão à venda legalmente.
Mas pessoas comuns continuam não podendo ter internet em casa. Com a facilidade de ter computador, no entanto, proliferaram as conexões discadas clandestinas – vendidas por gerentes de informática de empresas estatais e estrangeiras, autorizadas a ter internet. Mas os preços seguem sendo o gargalo. Para pessoas com autorização de ter internet em casa, como correspondentes de jornais estrangeiros, um pacote de 80 horas por mês custa US$ 75; a conexão ilimitada, US$ 625. Antes, os hotéis ofereciam internet só nos business centers. Agora, há também conexão sem fio, aos preços exorbitantes de US$ 7,50 a US$ 10 a hora.
Confinados a salários que não são suficientes para a sua sobrevivência, muitos cubanos suplementam seus rendimentos e ao mesmo tempo se abastecem no vasto mercado paralelo de produtos contrabandeados das fazendas e dos portos ou roubados das lojas e fábricas estatais.
Também têm trabalhos informais, táxis clandestinos ou aceitam propinas para passar na frente pacientes e clientes no serviço público. No seu discurso de encerramento dos trabalhos do Parlamento, no dia 27, Raúl disse uma frase que produziu calafrios nesses cubanos: “Deve ficar claro que não haverá retrocessos no propósito de fortalecer a institucionalidade, a disciplina e a ordem em todas as esferas do país, sem as quais simplesmente não se pode avançar.”
Todos esses sinais levam muitos cubanos a se perguntar se foram eles que se enganaram a respeito de Raúl, ou se seu ímpeto reformador está sendo contido por forças acima ou ao redor dele. Para isso também o discurso do dia 27 parece dar uma resposta. Pela primeira vez, Raúl falou na primeira pessoa: “Durante muitos anos tenho meditado sobre essas questões. Cheguei à conclusão de que um dos nossos problemas fundamentais é a falta de exigência sistemática em todos os níveis. É muito comum a violação de regulações oficiais e de leis da República, e não acontece nada.” Aos 77 anos, Raúl parece disposto a deixar a sua marca.
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