Jovens cubanos usam a música para criticar o governo e população sobrevive como pode a um regime ‘prestes a desaparecer’
HAVANA – A Avenida dos Presidentes se chama assim porque ali se perfilavam estátuas dos ditadores que se alternaram no poder quando Cuba era um protetorado americano, entre a independência da Espanha em 1898 e a Revolução de 1959. Depois da Revolução, que hoje completa 50 anos, as estátuas foram arrancadas. Hoje a larga calçada no meio da avenida é ocupada por jovens que vêm passar a noite tocando violão, conversando e tomando sorvete e rum, sob o olhar de policiais fardados e à paisana. Com seus cortes de cabelo, roupas, atitudes e conversas, esses netos da Revolução não a lembram em nada, e se parecem com os jovens de qualquer país latino-americano.
Muitos deles exibem as longas franjas dos “emos”, termo que vem de “emotivos”, e se refere ao cultivo da sensibilidade e do sofrimento. A moda chegou em julho a Havana. Mas, para a maioria dos jovens da Avenida dos Presidentes, que exalam a alegria característica dos cubanos, é apenas um corte de cabelo. Quando se pergunta se são “emos”, eles balançam a cabeça rindo, e mostram os braços, para provar que não se automutilam. Quanto ao que acham da vida sob a Revolução, as reações são variadas.
“Cuba é a melhor coisa que se poderia ter inventado”, diz Ramiro, um mecânico de 20 anos. “Somos revolucionários.” Outros são mais sutis. “Basta olhar ao redor para se dar conta”, sugere uma restauradora de 21 anos. “Eu não gosto de viver em Cuba”, revela Amanda, de 16 anos, professora numa escola infantil. “É uma pergunta muito dura, porque não conhecemos os outros países”, explica Yasnier, um pintor de 20 anos. “Gostaria de poder viajar como todo mundo.”
Yensen, de 19, conta que trabalha numa indústria farmacêutica a título de “serviço social”, no lugar do serviço militar. O repórter pergunta se a Revolução o designou para esse trabalho. “Ah, sim, ‘a Revolução'”, responde o rapaz, com indisfarçável descaso. “Cuba é o que há de melhor”, ironiza José, de 19 anos, que raspou o cabelo que tinha no estilo “emo” porque está cumprindo um ano e meio de serviço militar. “Levanto todas as manhãs e a geladeira está cheia das melhores coisas. Tomo banho com o melhor sabonete. Adoro o governo e o regime.” Todos riem ao seu redor.
Sob um regime que não tolera a discordância, muitos cubanos encontram no subterfúgio uma forma de expressão. A banda preferida dos jovens da Avenida dos Presidentes é Buena Fe, cujas letras de duplo sentido destilam críticas ao sistema. “Vendia canções na sacola preta, muito mais baratas que na rede comercial, roubadas sutilmente de minha consciência, pois o roubo é viver quando o roubo é lutar”, dizem os versos de uma música, referindo-se ao mercado paralelo, com que muitos cubanos se abastecem e ganham a vida. “Agora remendo corações partidos, frases pela metade e dores demais, partidos de vontade de mudar tudo, partidos de calma em plena tempestade.”
Noutra canção, o Buena Fe pede: “Deus, por favor, salve o rei, de calar a boca da gente. Porque de iguais, somos diferentes.” E noutra ainda, burla-se da disparidade entre os cubanos e os estrangeiros que vêm visitar a ilha: “E sempre prontas as asas para aterrissar em pista, porque camarão que dorme acaba comido pelos turistas.”
Existem duas Cubas: a dos produtos básicos e de má qualidade vendidos de forma controlada nos armazéns estatais em pesos cubanos, e a dos supermercados e lojas que se parecem com os de países capitalistas, que só aceitam CUCs, a moeda forte que equivale a 25 pesos e a US$ 1,25, que os turistas trazem nos bolsos, e que uma minoria de cubanos recebe em pequenas quantidades como bônus salarial ou na forma de gorjetas dos estrangeiros. Só com CUCs é possível comprar produtos de higiene, roupas, calçados e alimentos como carne e iogurte, que têm preços equivalentes aos do Brasil, ou até mais caros.
Em média, a cota de produtos como arroz, leite, ovos e macarrão vendida nos armazéns estatais dá para o consumo de uma quinzena. No resto do mês, e para os outros produtos, os cubanos precisam dar um jeito de conseguir CUCs para se abastecer. Alguns recebem dinheiro de parentes do exterior. Outros trabalham no vasto mercado de produtos contrabandeados e roubados das empresas estatais.
Em seu discurso de encerramento do ano legislativo, no sábado, o presidente Raúl Castro anunciou a eliminação de estímulos dados aos trabalhadores, sem deixar claro se se referia também aos bônus em CUCs. “Queria saber do que ele está falando”, disse uma arquiteta de 25 anos, que recebe 375 pesos (US$ 18,75) de salário e 10 CUCs (US$ 8) de estímulo. “Como assim? Vai nos asfixiar? Quer tirar de onde?” Em geral, o governo paga estímulos em CUCs para trabalhadores que têm contato com turistas, como os de hotéis, restaurantes e táxis, que são pagos em CUCs mas recebem salários em pesos, e para funcionários que podem se corromper ou desviar materiais do Estado. Um garçom, por exemplo, recebe 275 pesos (US$ 13,75) de salário e 10 CUCs (US$ 8) de incentivo.
Isso exclui médicos, professores e aposentados, por exemplo. Um professor do ensino básico e médio ganha 350 pesos (US$ 17,50); da universidade, 450 (US$ 22,50). A aposentadoria gira entre 225 e 300 pesos (US$ 11,25 e US$ 15). “Sem a ajuda que nossos filhos nos mandam da Espanha, o nosso orçamento iria para o chão”, dizem um ex-diretor de empresas estatais e uma geóloga, ambos aposentados. “Meu marido mora na Espanha”, explica a clínica geral de um posto de saúde, que ganha 573 pesos (US$ 28,65). “Os outros, não sei como sobrevivem.”
Um ginecologista de 59 anos, professor-titular da universidade, mostra a sua carteira: ele recebeu o seu salário de 650 pesos (US$ 32,50) no dia 20, e já não lhe resta moeda nacional na carteira. O médico pagou 400 pesos (US$ 20) num pernil e o resto em legumes para a ceia de ano novo. Ele deveria ficar no hospital onde trabalha das 8h às 16h, mas atende rapidamente suas pacientes e estaciona seu Lada Moscovitch ano 87 por volta de 11h em frente a uma galeria de butiques elegantes, à espera de passageiros.
Militante do Partido Comunista desde 1977, com a prestigiada carteira vermelha, o ginecologista ganha a vida como taxista clandestino. “A medicina é meu hobby e o táxi é meu trabalho”, diz ele. No fim da tarde de terça-feira, o médico tinha conseguido fazer duas viagens e ganhar 5 CUCs (US$ 6,25). O ponto clandestino onde trabalha desde 1995 equivale a uma junta médica: há um ortopedista, um dermatologista, um estomatologista e um clínico geral, além de um engenheiro e um psicólogo desportivo. “Aqui, não ganho muito dinheiro, mas pelo menos tenho esperança”, diz o médico. “Lá no hospital, não tenho sequer esperança.”
Diante dessas dificuldades e incertezas, os cubanos tentam perscrutar o seu destino nas declarações do presidente Raúl Castro, de 77 anos. No fim da tarde de hoje, ele fará mais um esperado discurso, da sacada da prefeitura de Santiago de Cuba, no leste da ilha, de onde seu irmão, Fidel, de 82, anunciou a vitória da Revolução, em 1º de janeiro de 1959.
Raúl, como Fidel, segue cercado dos companheiros da Revolução. Seu vice, por exemplo, José Ramón Machado Ventura, tem 78 anos. O fato de o país seguir nas mãos da primeira geração da Revolução alarma até mesmo um ex-membro do Comitê Central do Partido, de 70 anos. “Como um processo de 50 anos não consegue formar novos líderes?”, pergunta o ex-dirigente, sociólogo de formação. “A Revolução há muito tempo se deteve e está prestes a desaparecer.”
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