Testemunha de invasão da casa, ‘Pichu’ gravou imagens no celular e enviou ao embaixador na OEA
TEGUCIGALPA – Calça jeans, blusa branca, sandálias sem salto, magra e de rosto comprido, Xiomara, de 24 anos, passaria totalmente despercebida se não fosse por um detalhe: ela é a filha do presidente deposto Manuel Zelaya. Mas hoje ela não é apenas isso. É também a única testemunha – além do pai, obviamente – da invasão de sua casa pelos militares, e de um dado importante do ponto de vista jurídico: o horário em que a captura se deu.
Eram 5h20 quando Xiomara começou a disparar telefonemas, denunciando o golpe. A Constituição hondurenha impede a execução de mandados de busca e apreensão entre 18 horas e 6 horas. A lei prevê que sejam executados pela polícia, mas sua casa foi invadida por cerca de 200 soldados, que desarmaram, espancaram e deixaram ensanguentados, no chão, os seis guardas de honra que faziam a segurança da casa.
Zelaya, ciente de que poderia sofrer um golpe, havia pedido reforços. Mas, naquela noite, em vez dos habituais 12 agentes, o efetivo da Guarda de Honra tinha sido reduzido a 6. E uma patrulha da polícia que viera para o reforço saíra de madrugada, para atender a um chamado.
Nas semanas que precederam o golpe, Zelaya estava dormindo em quatro casas diferentes, para despistar os militares. Mas, nos últimos dias, o comandante das Forças Armadas, general Romeo Vásquez, telefonou várias vezes para a primeira-dama, Xiomara (mãe e filha têm o mesmo nome), assegurando-lhe que nada aconteceria.
Vásquez havia sido destituído por Zelaya por recusar-se a realizar a consulta popular – atribuição das Forças Armadas –, e restituído pela Corte Suprema de Justiça. Ele chegou a dizer a Xiomara que o presidente seria bem-vindo ao Estado-Maior, para “tomar um cafezinho”. A primeira-dama acreditou no general e convenceu o marido de que não havia perigo em voltar a dormir em casa. “Minha mãe se sente culpada por isso”, conta a filha, conhecida pelo apelido “Pichu”.
Na madrugada do golpe, dia 28 de junho, Xiomara ligou a TV e viu seu pai falando ao vivo no Canal 8, entre 1 e 3 horas, sobre a consulta popular que pretendia realizar naquele domingo. Mandou um SMS para o pai, que lhe respondeu: “Vá dormir e me desperte às 6 horas.” Xiomara, que continuava dormindo noutra casa, por segurança, chegou às 5 horas na casa de seus pais. Sua mãe estava em Olanto, o departamento de onde vem a família, em campanha para a consulta.
Às 5h20, Xiomara tomava banho quando ouviu disparos. Seu pai veio até seu quarto e gritou: “Pichu, os militares chegaram. Estão me dando o golpe. Vista-se.”
Ela trancou a porta do quarto e telefonou para Gilberto Ríos, dirigente do Bloco Popular, que apoiou a mobilização pela consulta. Estudante de comunicação e publicidade, Xiomara ligou também para a Rádio América, uma das mais ouvidas, mas lhe disseram que estava enganada, que não havia golpe algum, e bateram o telefone. Ligou para a Rádio Globo e para o Canal 36, que apoiavam Zelaya, mas ninguém atendeu. “Eu não sabia, mas os militares as tinham tirado do ar às 5 horas.”
Sua ajudante de ordens (cada membro da família tem um), tenente do Exército, trancou as portas e portões da casa, que se mantinham abertos para que os guardas de honra transitassem. Os soldados tentaram entrar pela frente e não conseguiram. Foram para os fundos e arrombaram a tiros o portão.
Eram 5h30. Ela ouviu um militar gritar para o seu pai: “Mãos para cima. Entregue o celular.” Seu pai respondeu: “Se sua ordem for disparar, dispare.” Xiomara diz ter acreditado que era essa a ordem, e temeu que nunca mais veria seu pai.
Zelaya foi levado de pijama. Os soldados vasculharam a casa toda. Xiomara escondeu-se debaixo da cama. Eles entraram no seu quarto, viram sua ajudante de ordens e se foram. “Fiquei 40 minutos debaixo da cama, até que minha ajudante veio e me disse que todos tinham ido”, conta.
Então, ela tentou telefonar para Carlos Sosa Coello, o embaixador de Honduras na OEA, em Washington, mas as chamadas para fora do país estavam bloqueadas. Xiomara filmou com o celular as portas arrombadas e enviou como mensagem ao embaixador.
A TV estatal chegou a transmitir uma legenda no rodapé da tela noticiando o golpe, mas quando a apresentadora ia fazer o anúncio, os militares interromperam a programação e assumiram o comando da emissora, relata Xiomara.
Ela tentou falar com a mãe, mas seu celular não atendeu. Telefonou para Zoe, sua irmã de 33 anos, que estava grávida do segundo filho. Zoe conseguiu falar com a mãe às 5h50 e avisou também os outros dois irmãos, Héctor e José Manuel. Zelaya reapareceu por volta das 15 horas, em San José da Costa Rica, depois de ser despejado de um avião da Força Aérea na pista de pouso.
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