Afinal, quem é o eleitor de Trump?

Desemprego de 4,9%, inflação de 1% e crescimento econômico de 2,4%. Nada mau, em um ano eleitoral. No país da frase “A economia, estúpido”, cunhada pelo estrategista da campanha de Bill Clinton em 1992, a sua mulher, candidata do presidente Barack Obama, deveria estar surfando numa onda melhor. No entanto, o exótico bilionário Donald Trump, que nunca teve um cargo eletivo, tem dado certo calor em Hillary Clinton. Exótico? Para uma parte da elite e da classe média, sim. Mas Trump está para a classe média baixa americana assim como Lula esteve para a classe pobre brasileira: ele fala a sua língua, como talvez ninguém jamais ousou.

Sim, o caso é de ousadia, porque o bilionário americano fala ao microfone, para todos ouvirem, aquilo que a maioria dos políticos não tem coragem de dizer nem para si mesmos, ou, na melhor das hipóteses, sussurram apenas na cozinha de sua casa. Trump está numa cruzada contra o politicamente correto. E milhões de americanos, aqueles que nunca se identificaram com o blá-blá-blá de Washington, do qual Hillary é uma autêntica representante, estão amando.

Pesquisa divulgada no dia 15 pela empresa de comunicação Bloomberg mostra que 55% dos americanos consideram que sua vida melhorou em relação a 2009, primeiro ano de governo de Obama; 29% dizem que piorou, 14% que continua mais ou menos na mesma e 2% não têm certeza. Esse sentimento positivo se reflete na aprovação do Partido Democrata: 49% o vêem de forma favorável, enquanto que o Partido Republicano atinge apenas 32%, o nível mais baixo desde o início dessa sondagem, em setembro de 2009. Quando se trata dos candidatos, a vantagem de Hillary também é alta: 49% dizem que votariam nela e 37%, em Trump.

Na semana passada, a média das pesquisas, calculada pelo site Real Clear Politics, colocava Trump e Hillary em empate técnico: 44% para ela e 42% para ele. Nesta semana, Hillary aumentou sua vantagem: 44% a 38%. A pesquisa da Bloomberg pegou apenas em parte o impacto do massacre na boate gay de Orlando na madrugada de domingo, dia 12: ela foi realizada entre sexta-feira, 10, e segunda-feira, 13. De um lado, o episódio favorece Trump, que fala em impedir a entrada no país de muçulmanos — a religião do atirador Omar Mateen. Na pesquisa, 45% dos entrevistados consideram Trump melhor para enfrentar o terrorismo, e 41% acham isso de Hillary. Por outro lado, o massacre coloca em evidência a necessidade de controlar a venda de armas, defendida por Hillary e rejeitada por Trump, que se orgulha de ter o apoio da Associação Nacional do Rifle.

O mercado teme a instabilidade que as propostas de Trump podem gerar, por exemplo no que se refere ao comércio exterior e à imigração. Mas as diferenças clássicas entre republicanos e democratas sobre o tamanho do Estado acabam fazendo a balança pender para o lado de Trump no mercado financeiro. “Temos de fazer algo diferente de aumentar os impostos, precisamos tornar a estrutura tributária mais eficiente e as empresas americanas mais competitivas”, resume o investidor Mario Gabelli. “As regulações americanas estão sufocando as empresas. Acho que um cara do mundo dos negócios vê isso melhor.”

Na chamada economia real, apesar do sentimento predominantemente positivo, problemas concretos dos trabalhadores de nível de instrução mais baixo, assim como dos produtores rurais, misturam-se com identificações inteiramente subjetivas com esse homem sem papas na língua, que parece entendê-los tão bem. Isso fica bastante evidente, por exemplo, no setor agrícola, o mais sofrido de todos, que fechou 1,3% de suas vagas no ano passado, por causa da desaceleração da demanda mundial, enquanto a manufatura gerou 0,9% de empregos novos e os serviços, 2,1%.

Trump tem dito aos fazendeiros o que eles querem ouvir — para horror de ambientalistas e intelectuais em geral. No dia 27 de maio em Fresno, no coração do agronegócio californiano, Trump entrou na questão da água, assunto explosivo na Califórnia. “Se eu vencer, acreditem em mim, vamos começar a abrir a água,  para que os seus fazendeiros sobrevivam e seu mercado de trabalho melhore”, disse ele a milhares de eleitores, enquanto cerca de 200 manifestantes protestavam, sob o olhar tenso de um batalhão de choque da polícia.

O candidato republicano tirou sarro dos ambientalistas dizendo que “estão tentando proteger um certo tipo de peixe de 3 polegadas”, chamou as restrições do acesso dos produtores à água de “insanas” e de “rídícula” a operação que lança água doce no mar. Lester Snow, diretor da Fundação Água da Califórnia, explica que essa medida “não é um desperdício”, mas serve para conter a invasão de água salgada do Pacífico e a contaminação dos lençóis freáticos. Além disso, um presidente não tem o poder de derrubar proteções ambientais nos Estados Unidos, o que requereria mudanças nas leis estaduais e federais. Trump não gosta de detalhes técnicos.

O candidato ganhou muitos adeptos também prometendo deportar os imigrantes ilegais, construir um muro para barrar a sua entrada na fronteira com o México e mandar a conta para o país vizinho. Diferentemente das questões ambientais, no entanto, essa proposta é mais visivelmente funesta para uma parcela dos produtores rurais — aqueles cujas atividades são mais intensivas em mão-de-obra, como horti-fruti-granjeiros e laticínios. Mais de 300 mil empregados no setor rural — em torno de um quarto da mão-de-obra no campo — são imigrantes ilegais, segundo pesquisa de 2009 do Pew Hispanic Center. Outros estudos, de acordo com o jornal Los Angeles Times, afirmam que eles são mais de 1 milhão.

A expulsão dos imigrantes ilegais e o fechamento da fronteira causaria a perda de até 61% da produção de frutas dos Estados Unidos, por causa da falta de mão-de-obra, afirma levantamento da American Farm Bureau Federation, a maior associação de classe do setor agropecuário do país. Ou seja, exportaria mais empregos, em vez de repatriá-los, como pretende Trump em sua campanha contra a liberalização comercial. A expulsão da mão-de-obra imigrante levaria ao fechamento de mais de 7 mil fazendas leiteiras, eliminaria 208 mil empregos, arrasaria a produção de leite, dobraria os preços dos laticínios e causaria um prejuízo de US$ 32 bilhões, de acordo com pesquisa da Universidade Texas A&M patrocinada pela Federação Nacional dos Produtores de Leite.

O setor agropecuário é o décimo maior doador nas campanhas eleitorais, à frente dos transportes e da defesa, e logo atrás dos sindicatos, segundo o Centro de Política Responsiva de Washington. E três quartos de suas doações vão para os republicanos.

Entretanto, a razão não é o único fator em uma eleição, em que o emocionalismo tem muitas vezes um papel mais preponderante. O grupo Fazendeiros por Trump tem difundido nas redes sociais um vídeo que conta uma história destinada a reforçar a simpatia pelo candidato republicano no meio rural. Durante a crise no setor em 1986, o fazendeiro Lenard Hill se suicidou para que sua família pudesse resgatar o prêmio de seu seguro de vida, pagar uma hipoteca e assim evitar a perda da fazenda. A seguradora não pagou o prêmio. Ao saber da tragédia, Trump doou US$ 20 mil para a viúva de Hill, Annabel, e ajudou-a a arrecadar mais donativos para pagar a dívida, mantendo a fazenda para a próxima geração.

O petróleo é outro setor no qual o apetite de Trump para atropelar o discurso ambientalmente correto tem caído bem — no caso, combinado com uma outra facilidade do candidato, a de contradizer posições que já defendeu. Trump acusou o senador texano Ted Cruz, seu ex-rival nas primárias, de ser “totalmente controlado pela indústria do petróleo”, criticou o projeto do oleoduto Keystone XL entre Alberta, no Canadá, e o Nebraska — ao qual Obama também se opôs, por razões ambientais —, e defendeu a produção de etanol.

Trump fez um giro de 180 graus em um discurso no dia 26 de maio, em uma conferência do setor, em Bismarck, Dakota do Norte. O candidato acusou Obama de provocar o fechamento de vagas e de retardar o desenvolvimento do setor de energia, e acusou Hillary de querer restringir ainda mais as atividades minerais. Passando por cima da queda dos preços de petróleo, da desaceleração da China e do aumento da exportação pela Arábia Saudita para se contrapor à produção do óleo de xisto americano, Trump tratou a crise no setor como resultado de erros das políticas domésticas. “O incrível potencial de energia da América continua inexplorado. É totalmente auto-infligido”, atacou o candidato, esquecendo que a produção de petróleo aumentou 72% sob o governo Obama, até o ano passado. “Estamos carregados, nem sabíamos, estamos carregados”, celebrou ele, referindo-se às novas reservas como uma criança que ganha um brinquedo novo — ou como Lula na euforia do pré-sal. “Não tínhamos ideia do quanto somos ricos.”

Os aplausos vieram mesmo foi quando o candidato republicano repudiou as preocupações com a mudança climática, que tanto mal têm feito ao setor: “Vamos cancelar o acordo da Conferência de Clima de Paris. Inacreditável. E parar todos pagamentos de dólares do contribuinte americano para os programas de aquecimento global da ONU”. Aí, sim. Ele confessou que se preocupa com a proteção da água e do ar, e que inclui em sua matriz energética as fontes nuclear, eólica e solar, desde que não prejudiquem aquelas que, “agora, estão funcionando melhor”, como as fósseis. “Uma administração Trump desenvolverá um plano de energia América Primeiro”, disse o candidato e, buscando a apoteose: “América Primeiro, pessoal. América Primeiro. Torne a América grande de novo! Torne a América grande!”

Mas é na indústra que se joga talvez o grande jogo da decadência americana, causada pela liberalização do comércio, que exportou empregos para a China e o México, por exemplo, prova cabal da falta de patriotismo e da indiferença com o sofrimento dos americanos, de acordo com a doutrina trumpiana.  O desemprego é baixo, mas houve um deslocamento da abertura de vagas do setor industrial para o de serviços, que oferece salários e direitos trabalhistas inferiores. A indústria americana fechou 5,4 milhões de vagas de 1998 a 2015. Entre 1964 e 2014, o poder de compra real dos trabalhadores urbanos sem funções gerenciais (os chamados blue collars) ficou praticamente estagnado: a hora de trabalho média valia US$ 19,18 em 1964, e US$ 20,67 em 2014, a dólares atualizados para 2014, segundo estudo do Pew Research Center. Essa estagnação é sentida como perda, diante da prosperidade em outras faixas, como nos cargos gerenciais, e no setor financeiro, por exemplo.

Trump promete impor tarifas de importação de 45% sobre os produtos chineses e romper o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), que os Estados Unidos mantêm com México e Canadá desde 1994. São medidas radicais, de difícil aprovação no Congresso, que seriam rechaçadas na Organização Mundial de Comércio, provocariam retaliações e possivelmente uma crise mundial. Mas é por sua radicalidade mesma, e como prova de que para Trump o que importa é a América, que essas propostas calam tão fundo no imaginário da classe média baixa. E sobretudo no chamado Rust Belt (Cinturão da Ferrugem), arco de oito Estados que vai do Nordeste ao Meio Oeste americano, cuja economia sofreu com a desindustrialização nas últimas seis décadas — incialmente pela automação e deslocamento para outras regiões dos Estados Unidos, e depois em busca da mão-de-obra mais barata fora do país.

Boa parte dos Estados do Rust Belt é pendular, ou seja, ora vota nos republicanos, ora nos democratas. Historicamente é esse tipo de Estado — a Flórida é outro exemplo, mas Trump não tem chance lá, dada a importância do voto latino — que decide eleições americanas. Antes de Trump e Hillary obterem nas primárias o número de delegados necessários para se sagrarem candidatos de seus respectivos partidos, o outro pré-candidato que tinha um discurso cativante para essa massa de eleitores que se sente abandonada por Washington era Bernie Sanders, senador democrata por Vermont. Fortemente apoiado pelos sindicatos, Sanders também prometia erguer barreiras contra o comércio para reverter a desindustrialização do país — em mais uma demonstração de que os extremos da direita e da esquerda tendem a se encontrar.

Desse ponto de vista, Hillary fez um favor a Trump, ao derrotar Sanders nas primárias democratas. Obama recebeu Sanders na Casa Branca depois da vitória de Hillary, na semana passada, e ambos têm se esforçado para engajar o senador na campanha da candidata de seu partido. Hillary demonstrou preocupação com o impacto da liberalização comercial sobre os empregos, e acenou com ajustes, mas não com a veemência suficiente para aplacar a fúria dos colarinhos azuis.

A candidata democrata tem trafegado nas faixas abaixo e acima dessa: trabalhadores mais pobres do setor de serviços, que lutam pelo aumento do salário mínimo, de cerca de US$ 10 (dependendo do Estado) para US$ 15, e famílias de classe média que têm sido afetadas pelo encarecimento da moradia e empurradas para áreas residenciais mais baratas e distantes.

Hillary tem aproveitado o sincericídio de seu adversário para angariar apoio nessas fatias do eleitorado. Depois que Trump se referiu a Oakland, na Califónia, como uma das cidades mais perigosas do mundo, Hillary foi recebida lá no dia 27 de maio pela prefeita Libby Schaaf, que além de mulher é democrata. O clima era de desagravo à cidade, castigada pela violência urbana. “Apesar do que dizem algumas pessoas sobre o nível de segurança dessa cidade, Oakland tem feito progressos incríveis”, enalteceu a prefeita, dizendo-se “incrivelmente orgulhosa de ter a secretária Clinton” na cidade. “Quero ser uma campeã por Oakland e por todas as Oaklands da América, lugares que têm desafios como qualquer parte de nosso país”, assegurou Hillary. “Somos mais fortes quando trabalhamos juntos e reunimos todos na mesa”, acrescentou, numa crítica velada ao efeito divisor da retórica de Trump.

A crescente polarização dos Estados Unidos é um fenômeno de muitos anos, e as atitudes dos candidatos podem colocar mais lenha na fogueira ou não, mas não serão capazes de revertê-la, no horizonte visível. Mais do que qualquer outra, esta eleição será um duelo entre duas visões irreconciliáveis de país.

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