A conexão russa de Kushner

 

O conselheiro sênior da Casa Branca, Jared Kushner, indo ao encontro do rei Salman bin Abdulaziz Al Saud, da Arábia Saudita, junto ao presidente Donald Trump e a delegação dos Estados Unidos/ Jonathan Ernst

Não é só no Brasil que uma investigação sem fim vai desvelando, como um fio da meada que foi puxado, de que forma as coisas são feitas de trás das cortinas que servem de fundo falso para as declarações públicas preparadas pelos políticos. A diferença, no caso dos Estados Unidos, é que a “Russian probe”, a investigação sobre as relações entre os governos de Donald Trump e Vladimir Putin, revela a nova cultura instalada na Casa Branca, e não práticas ancestrais, como faz a Lava Jato no Brasil.

Nesta terça-feira, a CNN revelou que funcionários do governo russo discutiram informações potencialmente prejudiciais à imagem de Trump durante a eleição do ano passado. As fontes são dois ex-funcionários de inteligência e um congressista. Uma delas detalhou que a natureza da informação era financeira, e que os russos estavam discutindo se ela servia de trunfo para chantagear Trump.

Já havia circulado, no início do ano, um dossiê apócrifo segundo o qual os russos teriam em mãos informações sobre negócios comprometedores de Trump e também uma história esdrúxula de uma suposta noitada do bilionário com prostitutas no quarto de hotel em Moscou no qual o ex-presidente Barack Obama dormira com sua mulher, Michelle. Trump deu um desmentido furioso dessas versões.

As fontes da CNN alertaram que as alegações dos russos podem ter sido “exageradas ou inventadas”. Mas, independentemente de serem verdadeiras ou falsas, serviriam de indícios na investigação que o FBI conduz sobre as tentativas do governo russo de interferir na eleição presidencial americana.

O relatório de inteligência ao qual as fontes tiveram acesso tinha os nomes dos assessores de Trump apagados, mas deixava claro que as conversas envolviam membros da equipe de campanha de Trump.

A CNN já havia noticiado no dia 20 a interceptação de conversas entre funcionários russos vangloriando-se de sua capacidade de influir sobre Trump, por meio do acesso a seus assessores de campanha, incluindo o general Michael Flynn.

Nomeado chefe do Conselho de Segurança Nacional, o general teve de renunciar logo no início do governo, por ter omitido conversas com o embaixador russo em Washington, Sergey Kislyak, nas quais discutiu a renovação das sanções impostas pelos EUA à Rússia.

Pela mesma razão, o secretário da Justiça, Jeff Sessions, que acumula as funções de procurador-geral da República e advogado-geral da União, teve de se excluir das investigações sobre a Rússia.

Diante das repercussões negativas da demissão do diretor do FBI, James Comey, que pretendia aprofundar as investigações, Trump nomeou seu antecessor, Robert Mueller, chefe de uma comissão especial para apurar o caso de forma independente.

As revelações da CNN se somam às do jornal The Washington Post, que na sexta 26 noticiou que Jared Kushner, genro e assessor especial de Trump, propôs a Kislyak (sempre ele) que a equipe de transição e o governo russo conversassem pelo canal criptografado de comunicação da embaixada da Rússia em Washington.

Segundo o jornal, o FBI interceptou mensagens entre o embaixador e seus superiores em Moscou, nas quais ele relatava essa proposta de Kushner, apresentada nos dias 1 ou 2 de dezembro, na Trump Tower, onde a equipe de transição trabalhava em Nova York. O general Flynn participou do encontro. Kislyak teria recusado o pedido, por receio dos riscos.

Escalado para defender o governo nos programas de entrevista das TVs no domingo, o secretário de Segurança Pública, John F. Kelly, não viu problema: “É normal e, na minha opinião, aceitável”, disse ele à ABC. “Qualquer forma pela qual você possa se comunicar com as pessoas, particularmente organizações que talvez não sejam muito amistosas conosco, é boa”, completou ele, sem confirmar o pedido de Kushner aos russos. À NBC, o secretário disse que “usar canais secretos não significa que a informação será necessariamente escondida do resto do governo”.

Essa não é a visão de pessoas do meio. “Criar um canal secreto com base somente no aparato de comunicações russo é muito sério, extremamente perigoso”, avalia Mark Lowenthal, ex-diretor-assistente da CIA.

Além de arriscado, representantes de um futuro governo fazerem contato com autoridades estrangeiras sem o aval do atual seria uma violação das instituições democráticas, segundo Eliot Cohen, ex-conselheiro do Departamento de Estado no governo de George W. Bush. “Não tem como ser apropriado usar um sistema de comunicações de um governo hostil para evitar que nosso governo fique sabendo”, criticou Cohen.

Para Jon Finer, funcionário do Departamento de Estado no governo Obama, o pedido de Kushner mostra que “a equipe de Trump tem menos confiança no governo americano do que em um adversário estrangeiro que minou as eleições” dos EUA. Finer completou: “A pergunta do milhão é que questão era tão urgente e sensível que o presidente precisasse lidar com ela dessa forma”.

Não se sabe ao certo. Entretanto, uma reportagem de março do jornal The New York Times mostra a amplitude dos interesses de Kushner, cuja família é proprietária, como Trump, de um bilionário império imobiliário. Segundo o jornal, o marido de Ivanka Trump se reuniu em dezembro com Sergey Gorkov, CEO do Vnesheconombank. Gorkov foi nomeado por Putin em janeiro de 2016 para a equipe de restruturação do banco estatal.

O Vnesheconombank está entre as empresas sob sanções dos EUA, por causa da anexação da Crimeia pela Rússia em 2014 e do apoio de Moscou aos separatistas russos no leste da Ucrânia. Trump se disse a favor da anexação.

O banco havia ajudado na construção do Trump International Hotel and Tower de Toronto, um empreendimento da empresa do atual presidente. Segundo The Wall Street Journal, a instituição comprou US$ 850 milhões em ações de uma siderúrgica ucraniana do bilionário canadense de origem russa Alexander Schnaider, que estava construindo o edifício de 65 andares.

A reunião entre Kushner e Gorkov coincidiu com o período em que o genro do presidente estava procurando investidores para um prédio de escritórios de sua família na 5.ª Avenida, em Nova York. Esse empreendimento por sua vez é financiado pelo Grupo de Seguros Anbang, que tem ligações com o governo chinês. No dia 16 de novembro, uma semana depois da eleição de seu sogro, Kushner jantou em Nova York com Wu Xiaohui, presidente do Anbang, segundo o Times.

Ao preencher o questionário para a verificação de seus antecedentes pelo FBI — requisito na nomeação de cargos federais de alto escalão —, Kushner aparentemente não revelou esses contatos. “Acho que deveria haver uma revisão da verificação de antecedentes dele, para saber se ele foi sincero”, considera o líder democrata no Comitê de Inteligência da Câmara dos Deputados, Adam Schiff. “Se não foi, não tem como ele manter a aprovação da nomeação dele.” O deputado de oposição disse que espera que o genro do presidente venha prestar esclarecimentos ao comitê.

Trump não respondeu especificamente a essas denúncias. Mas, numa série de tuítes depois de voltar da Europa, ele escreveu, no domingo: “É minha opinião que muitos vazamentos que saem da Casa Branca são mentiras fabricadas inventadas pela mídia da #FakeNews”.

Pelo menos as notícias de que Trump preparava mudanças em sua assessoria de imprensa não eram falsas: o diretor de Comunicações da Casa Branca, Michael Dubke, renunciou nesta terça-feira, alegando razões “pessoais”. Quando as notícias são ruins, é comum os políticos culparem a imprensa e suas próprias equipes de comunicação. Mas usar o canal de comunicação de um país rival para se esconder de adversários políticos internos — isso é inédito.

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