Lourival Sant’Anna
Uma das diversões de Donald Trump parece ser ir até a beira do abismo, olhar para baixo e depois recuar, curtindo o frio na barriga. Os recuos salvam o dia, mas têm um alto custo em credibilidade e prestígio. Foi o que se deu na noite de quinta-feira. Em telefonema ao presidente Xi Jinping, Trump se comprometeu com o princípio de “uma China”.
Recuou assim das declarações que fizera colocando em dúvida essa condição das relações entre os dois países, depois de outro telefonema — esse sem precedentes — com a presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, no dia 2 de dezembro. O timing da conversa reparadora com Xi não poderia ser mais crucial: ela ocorreu horas antes de Trump receber Shinzo Abe, o primeiro-ministro nacionalista do Japão, mais importante rival da China.
De acordo com um comunicado da Casa Branca, Trump e Xi tiveram uma conversa longa. “O presidente Trump concordou, a pedido do presidente Xi, em honrar nossa política de uma China”, afirmou a nota, referindo-se à posição adotada pelos Estados Unidos desde 1979, quando estabeleceram relações diplomáticas com a China e romperam com Taiwan, no governo do democrata Jimmy Carter. “Representantes dos Estados Unidos e da China se envolverão em negociações sobre várias questões de interesse mútuo.”
Uma nota do Ministério das Relações Exteriores citou declarações de Xi: “Acredito que os Estados Unidos e a China são parceiros de cooperação, e por meio de esforços conjuntos podemos elevar as relações bilaterais para um novo patamar histórico. China e Estados Unidos podem absolutamente complementar o desenvolvimento um do outro e avançar juntos”.
Os dois presidentes ainda não se haviam falado depois da posse de Trump, em 20 de janeiro. Segundo fontes diplomáticas ouvidas pela agência Reuters em Pequim, as autoridades chinesas só quiseram concretizar o telefonema depois de ter certeza de que Xi não seria humilhado por uma conversa que desse errado e cujos detalhes fossem depois vazados pela mídia.
Foi o que aconteceu com o primeiro-ministro da Austrália, Malcolm Turnbull. Depois de uma conversa dele com Trump no dia 28, o jornal The Washington Post revelou que o presidente americano bateu o telefone na sua cara, depois de 25 minutos de uma chamada prevista para durar uma hora.
A conversa ocorreu um dia depois de Trump assinar o decreto — suspenso por liminares na Justiça americana — que barrava a entrada de cidadãos de sete países de maioria muçulmana por 90 dias, de refugiados de qualquer origem por 120 e de sírios por tempo indeterminado. Turnbull cobrou o cumprimento de um acordo firmado com o governo de Barack Obama, poucos dias antes da eleição de Trump em 8 de novembro, pelo qual os EUA receberiam 1.250 refugiados do Irã, Afeganistão, Iraque e outros países, que aguardam em centros de detenção nas ilhas de Nauru e Manus (Papua Nova Guiné). Seria uma retribuição à aceitação, por parte da Austrália, de refugiados de El Salvador, Guatemala e Honduras, por sua vez detidos na Costa Rica.
Trump disse a Turnbull que “seria morto” politicamente se levasse adiante o trato. Acusou a Austrália de tentar exportar “os próximos terroristas de Boston”, em referência ao atentado contra a maratona, cometido em 2013 por dois irmãos chechenos. Por fim, acrescentou que naquele dia havia falado com quatro governantes, incluindo o russo Vladimir Putin , e que aquela era “de longe a pior chamada do dia”.
A desastrosa conversa foi num sábado, e Trump a continuou ruminando nos dias que se seguiram. Tanto assim que, não contente, na quarta-feira seguinte, ele tuitou: “Vocês acreditam nisso? O governo Obama concordou em receber milhares de imigrantes ilegais da Austrália. Por quê? Vou estudar esse acordo idiota”.
Assim se arruinavam as relações dos EUA com um de seus aliados mais leais. A Austrália sempre apoiou as ações militares americanas, incluindo a mais “idiota”, para usar o adjetivo de Trump: a invasão de 2003 do Iraque, com navios, caça-bombardeiros e tropas terrestres.
Durante a campanha, Trump acusou a China de praticar um comércio injusto com os EUA, e ameaçou impor tarifas de importação de até 45% sobre os produtos chineses. O déficit comercial dos EUA com a China caiu 5,5% em 2016, mas ainda é alto: 347 bilhões de dólares. Com o México, o outro bode expiatório de Trump, o déficit aumentou 4,2% no ano passado, chegando a 63,2 bilhões de dólares — o maior desde 2011.
Nove dias depois da conversa com a presidente de Taiwan, em entrevista à Fox News, Trump explicou que sua atitude era motivada por uma estratégia de arrancar concessões comerciais dos chineses:“Entendo perfeitamente a política de uma China, mas não sei por que temos de ser obrigados a segui-la, a menos que façamos um acordo com a China, que tenha a ver com outras coisas, incluindo comércio”, disse ele.
As “outras coisas” são: uma suposta desvalorização do yuan para facilitar as exportações chinesas, que é uma queixa extemporânea, já que a China tem usado suas reservas para conter a queda de sua moeda; tarifas alfandegárias aplicadas sobre produtos americanos; a construção de instalações militares chinesas no Mar do Sul do China; e o fato de Pequim não conter a agressividade da Coreia do Norte, que depende do comércio e da ajuda da China para sobreviver.
Diante disso, Taiwan percebeu que não estava recebendo um apoio dos EUA com base em princípios, mas sendo usada como carta de negociação com a China. Depois da conversa desta quinta-feira entre Trump e Xi, um porta-voz da presidente Tsai Ing-wen disse em comunicado que é do interesse do país manter boas relações tanto com os Estados Unidos quanto com a China.
O Conselho de Assuntos Continentais, que conduz as relações com a China, exortou Pequim a adotar uma “atitude positiva” e uma “comunicação pragmática” com Taiwan. Tsai e seu Partido Progressista Democrático defendem o reconhecimento formal da independência da ilha em relação à China, da qual se separou depois da Revolução Comunista de 1949, quando os nacionalistas e capitalistas que governavam o país, liderados pelo general Chiang Kai-shek, fugiram para Taiwan.
No mês seguinte à eleição de Tsai, em maio do ano passado, Pequim rompeu o diálogo com Taipé, embora as relações comerciais continuem bastante intensas, com grandes indústrias taiwanesas instaladas na China. O governo chinês só aceita ter relações com países que não reconhecem Taiwan. O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores em Pequim, Lu Kang, declarou nesta sexta-feira que o princípio de “uma China” é a base das relações sino-americanas. “Garantir que essa base política não estremeça é vital para o desenvolvimento saudável e estável das relações China-EUA.”
Em seu livro A Arte da Negociação, de 1987, Trump explica: “Meu estilo de negociar é muito simples e direto. Eu almejo muito alto, então vou empurrando, empurrando, empurrando até conseguir o que quero”. Colocar em dúvida a soberania da China sobre Taiwan parece ter sido uma jogada desse tipo de estratégia.
Só que neste momento Xi saiu fortalecido, e não parece ter cedido. Então, como ficou Trump nessa história? “Há certamente uma forma de negociar com os chineses mas ameaças a interesses fundamentais, centrais, são de cara contraproducentes”, desaconselha James Zimmerman, ex-presidente da Câmara de Comércio Americana na China. “No fim das contas Trump apenas confirmou para o mundo que ele é um tigre de papel, que parece ameaçador, mas é totalmente inefetivo e incapaz de aguentar um desafio.”
Com o Japão, o mesmo padrão vem sendo observado. Durante a campanha, Trump colocou em dúvida se seria do interesse dos Estados Unidos defender o Japão de um eventual ataque, como prevê o tratado firmado entre os dois países depois da 2.ª Guerra Mundial. Assim como com relação aos países do Leste Europeu, membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) vulneráveis à Rússia, o raciocínio de Trump durante a campanha foi o de que cada um deve pagar pelos custos de sua defesa. Já eleito, Trump incluiu o Japão ao lado da China e do México, entre os países que adotam políticas comerciais prejudiciais aos Estados Unidos.
Abe, no entanto, parece saber lidar com o errático bilionário. Ele se tornou o primeiro governante a se reunir com Trump depois de eleito, já no dia seguinte à sua vitória, em 9 de novembro. Nesta sexta, ele se tornou o segundo a ser recebido por Trump depois de sua posse. A primeira-ministra britânica, Theresa May, esteve em Washington no dia 27. Para a cúpula desta sexta-feira, Abe não veio de mãos vazias: trouxe projetos de empresas japonesas de investimentos em infraestrutura — um dos grandes temas da campanha de Trump —, que somam 150 bilhões de dólares e prometem criar 700 mil empregos.
Verdadeira música para os ouvidos do presidente americano, que retribuiu garantindo que os EUA manterão firme a aliança de defesa com o Japão, e não mencionou, pelo menos na entrevista coletiva que se seguiu à reunião, a antipática cobrança de que o parceiro pague por isso nem fez ameaças de guerra comercial.
“Estamos comprometidos com a segurança do Japão e de todas as áreas sob seu controle administrativo, e em fortalecer nossa aliança muito crucial”, declarou Trump na coletiva. “O elo entre nossas duas nações e a amizade entre nossos dois povos são muito, muito profundos. O governo está comprometido em tornar esses laços ainda mais próximos.” Um comunicado conjunto reafirmou que o tratado de segurança entre os dois países inclui o arquipélago japonês de Senkaku, no Mar do Leste da China, reivindicado pelos chineses, que o chamam de Diaoyu.
Abe se declarou “completamente ciente” da decisão de Trump de retirar os Estados Unidos da Parceria Transpacífico, acordo de livres trocas comerciais e de serviços que inclui o Japão e outros 11 países banhados pelo oceano — e exclui a China, como parte da estratégia de Obama de enfraquecer a posição dos chineses. “Estou muito otimista de que bons resultados serão vistos do diálogo.”
Trump, Abe e suas mulheres passam este fim de semana na residência de descanso do presidente americano em Mar-a-Lago, na Flórida. Ali, a disputa passará para o campo de golfe. Mas, ciente dos aspectos narcísicos de seu novo amigo, e dotado da modéstia que caracteriza as boas maneiras japonesas, ele evitou um tom desafiador: “Meus scores no golfe não chegam perto do nível de Donald, mas minha política é nunca para cima, nunca para dentro, sempre mirando no buraco”.
Mais importante até que acertar nos buracos é manter “Donald” longe dos abismos.
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