A extravagante ideia foi do presidente da Federação de Futebol americana, Sunil Gulat: realizar a Copa do Mundo de 2026 conjuntamente nos Estados Unidos, Canadá e México. Como já fizeram em 1994, em Atlanta, os EUA poderiam perfeitamente sediar sozinhos uma Copa. Mas o objetivo de Gulat é juntar os cacos das relações dos vizinhos, sobretudo entre EUA e México, depois dos ataques do presidente Donald Trump aos imigrantes mexicanos, que chamou de “estupradores”, as promessas de construir um muro em toda a fronteira e impor tarifas de 35% sobre seus produtos, rasgando o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), que ele chamou de “o pior já firmado” por seu país.
Diante de tudo isso, Gulat obteve o apoio apoio efusivo de um aliado improvável: Donald Trump. “Especialmente com o que está acontecendo no mundo hoje, acreditamos que é um sinal enormemente positivo e um símbolo do que podemos fazer unindo as pessoas”, explicou o dirigente. “Tratamos disso muito especificamente com o presidente. Ele apoia plenamente a candidatura conjunta, encorajou-a, e está especialmente contente pelo fato de o México estar participando.”
Mais do que um projeto para um futuro longínquo, a “diplomacia do futebol” apoiada por Trump é a face visível de uma movimentação que vem ocorrendo entre os governos americano e mexicano por trás dos bastidores. Nos últimos dois meses, houve pelo menos sete reuniões entre ministros dos dois países, longe dos holofotes, nas áreas da economia, relações exteriores, comércio e imigração.
Os secretários americanos de Estado, Rex Tillerson, do Comércio, Wilbur Ross, e da Segurança Interna, John Kelly, reuniram-se diversas vezes com os ministros mexicanos das Relações Exteriores, Luis Videgaray, e da Economia, Ildefonso Guajardo. Astuto, Videgaray tem se aproximado também de Jared Kushner, genro e assessor de Trump, que tem adquirido cada vez mais atribuições, à medida em que vai vencendo a disputa de poder com o estrategista do presidente, Stephen Bannon.
Enquanto essa movimentação ocorre nos bastidores, o Twitter de Trump, uma metralhadora giratória que antes castigava duramente o México, já não faz referências ao vizinho do sul. “As relações estão muitos mais construtivas”, disse uma autoridade mexicana ao The Wall Street Journal. Um funcionário americana confirmou que os contatos estreitos têm melhorado o ambiente.
Em reunião com empresários americanos no início desta semana, Trump prometeu “surpresas muito agradáveis” para o Nafta, sem entrar em detalhes.
O Escritório do Representante de Comércio dos EUA, que conduz as negociações comerciais, enviou ao Congresso um esboço de projeto, com mudanças pontuais e modestas no texto do Nafta. O governo americano negou que o esboço representasse a posição da Casa Branca sobre o tema, mas foi um sinal do que pode estar por vir.
A aproximação é resultado das pressões de empresas americanas, principalmente do setor agrícola, que seriam fortemente prejudicadas pelo fim da tarifa zero e a perda do mercado mexicano. Um dos produtos americanos que abastecem a mesa dos mexicanos é o milho, que ocupa um lugar central na culinária do país. Os produtores de milho brasileiros e argentinos já estavam esfregando as mãos, de olho nesse mercado. Mas tudo indica que, para disputá-lo, o Brasil terá de se mexer e firmar um acordo de livre comércio entre Mercosul e México (a tarifa externa comum impede o Brasil de agir sozinho).
Em vigor desde 1994, o Nafta representou um impulso para o agronegócio americano, revela relatório da empresa de análise de cenários Stratfor. A experiência levou o setor a fazer forte lobby em favor da Parceria Transpacífico, que reúne 12 países. Rejeitada por Trump, ela ficou paralisada com sua eleição. Logo depois da posse do presidente, dia 20 de janeiro, empresas do agronegócio enviaram a ele uma carta coletiva, enfatizando a importância econômica do setor. São argumentos que o bilionário entende.
Embora as exportações agrícolas representem apenas 8% de todas as vendas dos Estados Unidos para o México, o setor sofreria 42% do impacto de um eventual aumento das tarifas resultante da anulação do Nafta, calculam os especialistas da Stratfor. Carne e açúcar estariam entre os mais afetados pela reintrodução dos impostos de importação.
Além do Meio Oeste americano, que concentra a produção de milho, o Texas, como Estado que faz fronteira com o México, também seria fortemente abalado. Na região de fronteira, há forte integração entre as cadeias produtivas. Gado bovino nascido no México, por exemplo, é engordado e abatido no Texas, e depois exportado de volta para o vizinho do sul. Na mesa dos americanos também chegam verduras e frutas baratas vindas do México, com seu clima bem mais quente. É uma complementaridade que tem beneficiado a ambos.
Os americanos — e o mundo — ainda estão se familiarizando com os métodos heterodoxos de Trump. No seu já muito citado livro de 1987, A Arte de Negociar, o bilionário do setor imobiliário explica como chega chutando a porta, colocando suas exigências num patamar muito elevado, para no final aterrissar onde pretendia, dando a aparência de ter feito concessões — e cavando muitas, no caminho. Nada de muito extraordinário para o mundo dos negócios. A novidade é ter um presidente — no caso, da maior economia potência militar do mundo — assumindo posições radicais e agressivas, das quais depois recua sem demonstrar sequer constrangimento.
Pois tem sido assim não só com o México, mas também com o Japão, a China, a Rússia, a Síria…
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